Projeto Rio Silveira

Instituto de Geociências (UNICAMP)

Projeto Rio Silveira

OS GUARANI E SEUS CANTOS

Texto produzido por Rafael Modesto

O povo Guarani foi um dos primeiros a manter contato com os colonizadores portugueses e espanhóis, no início do processo de dominação dos europeus sobre as terras ao sul do equador, no final do século XV e inívio do XVI. Ao longo da colonização, os indígenas foram forçados a aprender a língua e os costumes dos exploradores, seja através da religião promovida pelos jesuítas, grupo religioso da Igreja Católica.

No caso do Brasil, os Guarani que aqui viviam nos primeiros séculos de ocupação europeia, eram obrigados a se adequar aos costumes e ao idioma dos portugueses. Porém, essa imposição não foi aceita de forma tão fácil. Mesmo sendo escravizados e violentados pelos colonizadores por muitos anos, os Guarani nunca deixaram sua espiritualidade e costumes tradicionais de lado, nem mesmo a sua língua original.

Portanto, preservaram importantes manifestações culturais, especialmente ao que corresponde a lingua, mas também os seus cantos, músicas, contos, poesias, instrumentos musicais, entre outros. A tradição oral dos Guarani é o que mantém a história de seu povo viva por diversas gerações, sendo uma forma imprescindível de sobrevivência das comunidades indígenas frente ao preconceito e a violência dos juruá.

A música está intimamente vinculada à cosmogonia dos Guarani. O Deus deste povo representam a Natureza em suas diversas formas. O principal deles é Ñanderú Tenondé, ou “Nosso Pai Primeiro” ou “Pai Verdadeiro”, e tem sua essência “manifestada pelo ritmo, o Espírito-Música, o Grande Som Primeiro” (ALMEIDA & PUCCI, 2017, p. 177).

É também chamado de Tupã Tenondé ou Ñamandu, tido como “o primeiro”, uma espécie de criador máximo. Seu aspecto é colorido e brilhante, sendo semelhante a uma flor ou árvore. Como descrito por Almeida & Pucci, “Onde ele aparece, reflete luz. Seus dedos são ramagens floridas; a cabeça, a copa de uma árvore em plena floração. Ele é ao mesmo tempo o sol e a flor” (p. 177)

Segundo a tradição Guarani, Ñamandu deu origem a outros deuses para auxiliá-lo na criação da Terra. São eles Karaí, deus do fogo; Tupã, deus das águas, dos relâmpagos e dos trovões; Jakaira, deus da neblina e Ñanderu, o deus das palavras. Essas divindades representam os quatro pontos cardeais – norte, sul, leste e oeste – como se fossem palmeiras a sustentar o planeta. (ibid., p. 177). São também chamados de Seres-Trovões, assim como Ñamandu, que também é conhecido como kuaray, responsável por ser o criador da fala sagrada. Os Seres-Trovões criam os nomes, que, ao serem cantados, funcionam como o “sopro-luz”, definindo traços da personalidade do recém-nascido.

Os Mbyá Guarani manifestam sua relação com a natureza através de cantos, danças e rezas, componentes importantes de seus rituais, que simbolizam a cultura indígena e seus deuses. Dentre eles, há dois que são bastante tradicionais: o Xondaro, voltado para o fortalecimento espiritual dos jovens; e o Jeroky, um ritual mais profundo que visa “percorrer um caminho espiritual para chegar ao lugar divino” (p. 179).

Outro ritual de fundamental importância para o povo indígena guarani é o Nimongaraí. Nele, os Seres-Trovões realizam o sopro-luz, ou seja, a revelação dos nomes dos recém-nascidos. Após a meia-noite, os deuses escutam os cantos entoados pelos Guarani e, com isso, sopram o nome das crianças.

As palavras são muito importantes para este povo. Os Guarani desenvolveram uma língua ritual chamada ayvu porã, também revelada pelas divindades aos líderes espirituais. O aspecto divino é central na língua guarani, pois, para eles, palavra é vida e o som é considerado como o alicerce que dá base ao mundo.

Por isso, o canto é um elemento essencial para os Mbyá Guarani, na medida em que é através dele que se mantém contato com os espíritos da natureza, especialmente quando se refere as crianças da comunidade, cuja pureza lhes permite estabeleer comunicação com tais seres. Para esse povo indígena, Ñanderú revela os cantos espirituais, que são cantados por todos nas casas de oração (chamadas Opy).

De acordo com Almeida e Pucci (p. 182) existem quatro tipos de cantos na música Guarani, sendo eles:

  • Mitã Mongueá: Uma espécie de canção de ninar indígena, cantada pelas mães para fazer seus filhos dormirem. É transmitida pelos antepassados e exige das mães focalizarem seu pensamento em Ñanderu.

  • Mborahei: É a canção espiritual, dedicada a Ñanderu. É entoada no interior da Opy, com os cantores voltados ao amba, um tipo de altar dedicado ao deus criador.

  • Kunhã Mimby Pu: Música de flautas de bambu, dedicada a Tupã e Ñamandu. É entoada somente por mulheres, organizadas em duetos, de forma alternada entre si. Ocorre durante a lua minguante.

  • Kunhã Jerokya: Canção instrumental, tocada com rabeca, maracás, tambores e violão. Suas melodias provém de Ñanderu, e são dançadas somente por meninas, nas casas de oração ou no terreiro.

    Existem dois instrumentos musicais essenciais para a música Guarani: o mbaraka mirim (chocalho), tocado pelos homens e o takuapu (bastão de ritmos), tocado pelas mulheres. Com eles, os Mbyá celebram a vida, mas também curam e limpam a comunidade dos maus espíritos, além de marcarem a percussão musical das canções. Esses instrumentos têm seu simbolismo associado a natureza e a fertilidade.

    Há ainda a rabeca, ou ravé, que é uma espécie de violino, só que tocada sobre os braços; o anguapu, um tambor utilizado junto com o mbaraka mirim; o popygua, um bastão utilizado pelos pajés, é dotado de duas varas amarradas uma a outra. Seu som agudo ajuda a afastar espíritos maus.

    A música e o canto são importantes elementos da cultura Guarani, estando intrinsecamente ligados às crenças, costumes e tradições desse povo indígena. Através da palavra cantada, o indígena entra em contato com o mundo espiritual e os deuses que regem seu modo de vida.

  • A oralidade dos Guarani tem garantido sua sobrevivência ao longo dos séculos, mesmo em meio a violência, o descaso e o preconceito do homem dito “civilizado”. Através da música, os indígenas preservam sua essência cultural, o que fortalece sua presença no território e simboliza a resiliência de sua tradição secular.

    REFERÊNCIAS

    ALMEIDA, Berenice; PUCCI, Magda Dourado. A Floresta Canta! – Uma expedição sonora por terras indígenas do Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2014.

    ALMEIDA, Berenice; PUCCI, Magda Dourado. Cantos da Floresta – Iniciação ao Universo Musical Indígena. São Paulo: Peirópolis, 2017.