Projeto Rio Silveira

Instituto de Geociências (UNICAMP)

Projeto Rio Silveira

CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS NAS TERRAS INDÍGENAS DO LITORAL DE SÃO PAULO

Texto produzido por Angélica Costa e Simonice Chaves

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (BRASIL, 1998, Art. 231)

Trecho Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Historicamente, o uso da terra sempre foi alvo de disputas, seja para exploração de recursos, plantio e colheita, construção de empreendimentos imobiliários ou símbolo de status social. Isso não poderia ser diferente com relação ao Litoral Norte de São Paulo, atraindo a atenção de grandes empresários e inúmeros turistas que se aventuram nas belezas turísticas da região. Além disso, o Litoral Norte conta com a presença de um dos principais portos do estado: DERSA, localizado na cidade de São Sebastião, o qual se liga ao Porto de Santos (caracterizado como o maior da América Latina) através da Rodovia BR-101, conhecida como Rio-Santos, possibilitando um desenvolvimento econômico significativo.

Se, por um lado, nos encantamos com as riquezas naturais da região, por outro, nos deparamos com os problemas sociais e ambientais advindos das intensas atividades desenvolvidas por ações humanas, sobretudo “relacionados com a especulação imobiliária, parcelamento irregular do solo, pesca predatória, estruturas náuticas e atividades portuárias em desconformidade com a conservação dos recursos marinhos” (RUIZ JUNIOR; OLIVEIRA, 2013, p. 50). Assim, a urbanização crescente na região litorânea e o desenvolvimento comercial se colocam como grandes agentes de transformação do território. Todas essas atividades geram impactos, positivos e negativos, na fauna, flora e população locais.

Na tentativa de preservar e proteger o meio natural foram instituídas as Unidades de Conservação, planificadas para o território brasileiro com determinadas normas gerais para sua elaboração e criação. Na região litorânea de São Paulo, existem 21 áreas protegidas e se dividem em duas categorias, de acordo com a Lei Federal nº 9.985, regulamentada no ano 2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC) (RUIZ JUNIOR; OLIVEIRA, 2013):

  • Unidades de Proteção Integral: admitem apenas uso de forma indireta, não envolvendo coleta, uso, consumo, dano ou qualquer tipo de destruição da natureza. Aqui, se destacam as Estações Ecológicas (ESEC), Reserva Biológica (REBIO), Parque Nacional (PARNA), Monumento Natural (MONA) e Refúgio da Vida Silvestre (RVS).
  • Unidades de Uso Sustentável: buscam conciliar a conservação da natureza com o uso sustentável de uma parte dos recursos naturais. Pertencem a essas unidades a Área de Proteção Ambiental (APA), Reserva Extrativista (RESEX), Reserva de Fauna (RF), entre outras.
 

Mas atenção! As Unidades de Conservação são um tipo de área protegida e existem outras, criadas com regulamentos próprios, como as Terras e Reservas indígenas. De acordo com a legislação vigente, marcada pela CF/88, Lei 6001/73 – Estatuto do Índio, Decreto n.º 1775/96 (BRASIL, 2020) as terras indígenas podem ser classificadas em:

  • Terras indígenas tradicionalmente ocupadas: terras da União habitadas de maneira permanente; é um direito originário dos povos indígenas;
  • Reservas indígenas: terras doadas por terceiros que se destinam à posse permanente dos povos indígenas;
  • Terras dominiais: terras de propriedades de comunidades indígenas;
  • Interditadas: Interditadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), para proteção de povos e grupos indígenas isolados, com restrição de ingresso e trânsito de terceiros.
 

No Estado de São Paulo, existem 30 terras indígenas com algum tipo de reconhecimento pela FUNAI, além de aproximadamente 16 que aguardam o início dos procedimentos de demarcação. Atualmente, há 41.794 indígenas no Estado, sendo os povos Mby’a, Tupi Guarani, Kaingang, Krenak e Terena (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO, 2020).

Os processos de regulamentação das terras indígenas, apesar de serem extremamente necessários, são muito burocráticos e, principalmente, demorados – como é o caso dos Guarani da Terra Indígena Rio Silveira, que iniciaram um novo processo de demarcação da área em 2002 e em 2020 ainda está em vias de homologação (submetido à presidência da República). Na prática, isso significa que as crianças que habitavam a aldeia em 2002 já se tornaram adultas, mas ainda não viram o final do processo.

A regulamentação delas impacta diretamente na existência (ou não) de políticas públicas na região. Em 2007, o Brasil instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), tendo como ênfase o “reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições” (BRASIL, 2020). Entretanto, na realidade, tais políticas são somente implementadas em terras indígenas já demarcadas.

Perante a invisibilidade e a enorme demora no processo de demarcação das terras indígenas, a Comissão Guarani Yvyrupa, que envolve o povo Guarani da região Sul e Sudeste do Brasil, realizou um manifesto da 7ª Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa, em 16 de Setembro de 2016. Nas palavras do manifesto:

o Governo e os empresários foram realizando cada vez mais grandes obras que impactavam nossas terras, dizendo que agiam em nome do desenvolvimento. Mas que desenvolvimento é esse que só beneficia os poderosos? Que cria um mundo em que não tem espaço para os povos indígenas e para a preservação do meio ambiente? (COMISSÃO GUANARI YVYRUPA, 2016)

A Terra Indígena Rio Silveira está situada em uma Unidade de Conservação, o Parque Estadual da Serra do Mar, mas ainda sofre com pressões externas. Isso ocorre, pois, sem a homologação, a terra fica vulnerável a possíveis contestações dos órgãos Nacionais ou até mesmo pela ocupação indevida do território, sobretudo por extrativistas não-madeireiros em busca da exploração de recursos. Nesse sentido, os moradores da Rio Silveira lutam para manterem vivas suas tradições.

A problemática da não garantia de território indígena atravessa outras questões importantes de sobrevivência física e cultural, tal como a segurança alimentar. De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo, o acesso à alimentação nas aldeias do Estado se dá, majoritariamente, pelas doações de cestas básicas e pela compra de alimentos, a partir da renda gerada pelo artesanato, turismo, assalariamento, aposentadorias e do programa Bolsa Família. Nessa perspectiva, são implementadas determinadas políticas públicas – lembre-se: apenas nas terras já demarcadas – com foco na geração de renda e segurança alimentar. Com destaque, temos o Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável “Microbacias II – Acesso ao mercado”, o qual não é exclusivo aos povos indígenas, e o projeto “Juçara Guarani”, desenvolvido especificamente na Rio Silveira.

O primeiro, que envolveu a aldeia Ekeruá (Avaí – SP) e Boa Vista (Ubatuba – SP), é uma ação do governo Estadual de São Paulo, cujo objetivo é “aumentar a produtividade e proporcionar o acesso ao mercado aos agricultores familiares organizados em associações e cooperativas em todo o Estado, bem como organizações de produtores de comunidades tradicionais como quilombolas e indígenas” (SÃO PAULO, 2020). Já o segundo projeto é uma “alternativa sustentável, que promove a recuperação da espécie ameaçada de extinção e, principalmente, a geração de renda e segurança alimentar, através do aproveitamento dos frutos da palmeira juçara para a produção de polpa congelada, sementes e mudas na Terra Indígena Ribeirão Silveira” (BRASIL, 2020).

Além disso, o turismo desenvolvido pelos indígenas da aldeia se caracteriza como uma importante fonte de geração de renda e faz parte do dia a dia da comunidade. Dessa forma, as visitas são feitas necessariamente com um monitor turístico ou ambiental credenciado pela FUNAI em passeios que, geralmente, duram meio dia.

Segundo Santos (2019), com a valorização do mundo rural a partir da década de 70 houve uma intensificação à proteção do meio ambiente e a população do meio urbano passou a buscar no turismo rural uma forma de aproximação com a paisagem natural, diferente da vivida no cotidiano. Em um contexto em que grandes empreendimentos hoteleiros passam a ser criticados e seus impactos socioambientais ocasionam grandes danos na região, surge o turismo de base comunitária.

Os indígenas da região da Rio Silveira adotaram o turismo como um tipo de prática para gerar renda aos moradores da comunidade. Santos (2019, p. 67) nos leva a refletir sobre o “fortalecimento cultural e político” das comunidades e das políticas públicas voltadas à região do Litoral Norte de São Paulo. Dessa forma, garantir a participação dos indígenas no processo de planejamento turístico para visitação das aldeias e abrir a busca de um relacionamento com as comunidades juruá (não-indígenas) podem incentivar o diálogo e fortalecer encontros interculturais. Nesse sentido, o turismo pode atuar como “uma importante ferramenta para a erradicação da extrema pobreza e garantia da sustentabilidade ambiental” (SANTOS, 2019, p. 69).

Tendo em vista as crescentes pressões econômicas e sociais advindas do Estado e dos grandes empresários, é importante apoiar a luta dos povos indígenas pelo crescimento sustentável da aldeia, perpassando pela garantia das terras e a proteção das ricas tradições. Assim, deixamos a palavra final para o manifesto da 7ª Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa:

[…] temos o petygua: nossa reza, nossa união e nosso nhandereko, nosso modo de vida. E com ele continuaremos resistindo nas nossas terras tradicionais, nas nossas retomadas, plantando o alimento verdadeiro, cuidando das matas e da água fresca que Nhanderu deixou para nós.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Acesso em: 18 jul. 2020.

BRASIL. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Povos e Comunidades Tradicionais. Acesso em: 18 jul. 2020.

COMISSÃO GUARANI YVYRUPA (Regiões Sul e Sudeste). Manifesto da 7ª Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa. 2016. Acesso em: 18 jul. 2020.

COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO (São Paulo) (org.). Índios em São Paulo. Acesso em: 18 jul 2020.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (Brasil). Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (ed.). Terra Indígena Ribeirão Silveira. Acesso em: 18 jul. 2020.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (Brasil). Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (ed.). Como funciona a Demarcação?. Acesso em: 17 jul. 2020.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Terras Indígenas. Acesso em: 17 jul. 2020.

RUIZ JUNIOR, Luiz Donizetti; OLIVEIRA, Regina Celia de. Áreas protegidas e expansão do uso da terra no litoral norte do estado de São Paulo. Caminhos de Geografia, Uberlândia, v. 14, n. 48, p. 48-59, dez. 2013. Acesso em: 17 jul. 2020.

SANTOS, Tatiane Ribeiro dos. Extensão Rural em Terras Indígenas no Estado de São Paulo: agrofloresta e turismo em aldeias guarani. 2019. 119 f. Dissertação (Mestre) – Universidade Federal de São Carlos, Araras, 2019. Acesso em: 18 jul. 2020

SÃO PAULO. Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente. Sobre o Parque Estadual Serra do Mar. Acesso em: 17 jul. 2020.

SÃO PAULO. Secretaria de Agricultura e Abastecimento, Secretaria do Meio Ambiente. Governo do Estado de São Paulo. Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável: Microbacias II – Acesso ao Mercado. Coordenadoria de Assistência Integral (CATI) e Coordenadoria de Biodiversidade e Recursos Naturais (CBRN). Acesso em: 18 jul. 2020.