Por Alanda Lopes Quotizzato Martins
Editorial Párrafos Geográficos N°22 vol.2
Em 6 de setembro de 2023, Carlos Walter Porto-Gonçalves, geógrafo, ativista, professor da Universidade Federal Fluminense e um dos mais renomados expoentes do pensamento geográfico brasileiro na América Latina, nos deixou.
Nascido em 21 de julho de 1949, graduou-se em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1972, e na mesma universidade concluiu o mestrado sob a orientação de Milton Santos em 1985, e o doutorado com a tese Geografando: nos varadouros do mundo: da territorialidade seringalista (o seringal) à territorialidade seringueira (a reserva extrativista) em 1998.
Lutou ao lado do líder seringalista Chico Mendes pela criação das Reservas Extrativistas brasileiras. Também alcançou reconhecimento por sua vasta e importante contribuição à Geografia Social, em temas como conflitos sociais, colonialidade do saber, ecologia política, território-territorialidade e justiça ambiental, com foco especial na Amazônia e na América Latina.
Carlos Walter Porto-Gonçalves publicou cerca de 120 artigos, publicou e participou de mais de 36 livros. Entre suas obras de maior destaque, Amazônia, Amazônias (2001); A Globalização da natureza e a natureza da globalização (2006); O Desafio Ambiental (2013); Amazônia – Encruzilhada Civilizatória: tensões territoriais em curso (2017).
Ao longo de sua extensa carreira, recebeu 14 prêmios, entre eles o Prêmio Milton Santos de Mérito Geográfico no Encontro de Geógrafos Latino-Americanos, 2019, o Prêmio Casa de las Américas – Literatura Brasileira em 2008, o Prêmio União Geográfica Internacional – Contribuição à Geografia Latino-Americana em 2017 e o Prêmio Chico Mendes do Ministério do Meio Ambiente em 2004. Foi professor da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina, e nos últimos anos foi professor visitante do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Destaca-se seu trabalho de pesquisa-extensão com a Universidade Federal Fluminense e a Comissão Pastoral da Terra.
Sua sensibilidade nos ensinou e continua a nos ensinar a olhar a geografia com rigor e a buscar combinações, evitando o óbvio. Ele nos permite pensar e reconhecer nuances sutis da realidade, sempre presentes, mas ocultas de nossas concepções habituais de como lemos a vida. “Só caminhando conhecemos os caminhos“. Carlos nos ensinou a ser humildes diante de nossas aparentes certezas. Seu estilo metodológico e infalível foi um exemplo para nos imergir na jornada do conhecimento com o desafio de descobrir todos os significados, e também nos ensinou com seu exemplo de generosidade, porque se há uma palavra que o define, é essa. A generosidade de sua presença, genuinamente disponível e envolvida nos avanços da pesquisa dos processos sociais. Carlos compartilhava o que sabia e, além disso, estava sempre disposto a aprender coisas novas. Ele entendia o exercício do conhecimento como uma dádiva e que a multiplicidade de trocas fortalecia a riqueza de seu conhecimento.
Um mestre em sua totalidade
Seus interesses eram diversos; ele sempre foi receptivo a diferentes eixos de pesquisa, desde abordagens que se posicionam no “fazer economia”, na soberania alimentar e no acesso ao alimento como plataforma de luta política, como algo fundamentalmente vital e de boa (con)vivência, em suas palavras. Nesse ponto, ele destacou o alimento e a comida como centrais para as complexas articulações e contradições de nosso status quo, mas que são reestruturados diariamente nos processos instituintes de nossas ações.
Ele também nos lembrou que essa vida é comum, e que a vida compartilhada é articulada e transformada pela reprodução material de nossa existência, pelo trabalho de mulheres e homens dedicados a uma vida digna no campo e nas cidades.
Carlos nos aconselhou que nossa maneira de pensar sobre a vida não deveria ser reduzida à sua dimensão estritamente biológica ou economicista e que deveríamos fugir do pensamento colonizado.
Como parte de sua formação marxista, ele leu o sistema teórico de Marx não apenas a partir da chave social e histórica para entender as relações capitalistas, mas também incluiu a dimensão simbólica e a crítica da economia política expressa na ideia do fetichismo da mercadoria. Não é por acaso, disse Carlos, que A Mercadoria é o primeiro capítulo de O Capital.
A subjetividade das relações capitalistas sempre esteve presente na construção das teorias econômicas, e foi insistida mesmo naquelas ancoradas em axiomas supostamente mecânicos, como os postulados de Smith. Uma esfera pouco consciente, mas escrita nas entrelinhas das leis postuladas por Smith, foi seu treinamento em filosofia moral e, com ele, um desejo de como, equilibrando o jogo individual de maximização de lucros do homo economicus, o mundo deveria ser bom e justo.
O pensamento econômico per se, desvinculado da subjetividade, baseado em cálculos estritamente quantitativos e de reprodução automática, nunca existiu. Uma dimensão que Carlos Walter destacou especialmente em “Economia moral“, de Edward Thompson, refere-se ao entendimento culturalmente mediado do que seria legítimo e não legítimo nas práticas de mercado, ao descrever as revoltas populares na Inglaterra do século XVIII mobilizadas pela economia moral dos pobres da época. A economia e a moralidade estão entrelaçadas e incorporadas aos traços culturais de diferentes grupos sociais, embora essa relação seja negligenciada nas narrativas históricas tradicionais. De fato, não existe um sistema capitalista de cima para baixo na sociedade, como Polanyi deixa bem claro em seu texto “Nuestra obsoletamentalidad de mercado” (1994).
A assepsia moral da economia é uma construção retórica. Uma retórica que se torna cada vez mais difícil de sustentar quando voltamos nosso olhar para os andares inferiores, para a civilização material, para o andar térreo onde a vida acontece e que diverge dos andares superiores da ação capitalista. Ali encontramos as formas de reprodução das condições materiais de vida, passadas e presentes, reproduzidas em todo o mundo, onde a realização da vida e a produção de riqueza proliferam de forma muito mais suscetível aos contextos sociais do que às leis universais da lógica mecânica. Esse estrato, tão bem descrito por Fernand Braudel, talvez seja o autor mais mencionado por Carles Walter ao chamar sua atenção para as muitas formas historicamente invisíveis de produzir e viver.
A razão pela qual ele argumentou que a expressão modo de produção, estruturalmente centrada na produção, só é válida para uma sociedade capitalista burguesa. Entre muitas de suas provocações, ele disse que a categoria modo de produção não coincidia com o sistema feudal, uma vez que não era centrado na produtividade: não existe um modo de produção feudal, mas uma sociedade feudal; e muito menos um modo de produção indígena, mas um modo de vida indígena. Portanto, referindo-se à frase do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ele concluiu que os índios não produzem, os índios vivem.
Nesses debates, ele nos pediu para “recuperar o melhor de Marx e Polanyi, que nos advertiram, em diferentes momentos, que é necessário ir além da economia“, e propôs pensar na realização de economias plurais de mulheres e homens a partir de seus topoi, de seus lugares na vida cotidiana, de onde as contradições do sistema nos atravessam. Onde os homens e as mulheres despertos atuam entre práticas de reciprocidade e vínculos comunitários, com suas formas de realização material da vida cercadas de horizontes emancipatórios para além da economia, “no aqui e agora, e sem renunciar aos sonhos tirando-os do sonho“.
No terreno das economias diversas caminhou como pensador do mundo mundano, do mundo inundado de vida, dessa vida recuperada através da luta política e epistemológica, sem dicotomias.
Com originalidade e rigor, com liberdade e compromisso e com muito amor, viveu como pensador e ativista da vida coletiva em seu sentido mais pleno, a seu serviço.
Carlos será imortalizado com aquela vivacidade com que iluminou o caminho de cada pessoa, de todos com quem conviveu, ampliando nossos horizontes de sentido no mundo. Os horizontes agora estão ampliados, e suas reflexões ainda nos ensinam, em nível de outras compreensões sobre a não finitude da vida.
Como mestre de excelência que foi, continua a nos ensinar que a vida se faz ao caminhar e que continua com seus próprios mistérios.
Aqui continuamos caminhando com sua imensa e inexplicavelmente inspiradora força, até o infinito.
Carlos meu amigo, obrigado por tudo.
Alanda Lopes Quotizzato Martins
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/CEDERJ-UERJ
Laboratório de Estudos Sobre Movimentos Sociais e Territorialidades, LEMTO/UFF
Núcleo de Estudos Território e Resistência na Globalização, NUREG/UFF
Fonte:
Texto e Imagem – Revista Párrafos Geográficos.
Excelente reflexão!