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A derrota do peronismo

Por: Flavio Lazzarin

“Parece que os partidos progressistas ainda não aprenderam a reconhecer o quanto as sociedades latino-americanas mudaram. Confrontados com uma mentalidade generalizada, que esquece as ditaduras corporativo-militares, a violência colonial e chega a considerar aceitáveis ​​os delírios da extrema direita, eles não reagem adequadamente e perdem-se na repetição acrítica de práticas e narrativas obsoletas”, afirma Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 27-11-2023.

Eis o artigo.

“O poder desgasta quem não o tem”: o aforismo do bispo e diplomata Charles Maurice de Talleyrand, o mais famoso transformador múltiplo da modernidade, foi retomado dois séculos depois por Giulio Andreotti.

Como é que, ao testemunhar o resultado das eleições presidenciais argentinas, me lembro do aforismo de Andreotti? Porque não consigo refletir sobre a vitória de Javier Milei, mas, pelo contrário, a pesada derrota do peronismo continua a atormentar-me. E então me pergunto se o poder realmente desgasta aqueles que não o têm ou se, em vez disso, o aforismo deveria ser substituído por um provérbio muito mais antigo: “mais cedo ou mais tarde os problemas voltam para a casa”. No final, o poder desgasta até mesmo aqueles que o possuem.

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Depois de oitenta anos, o Partido Justicialista sobrevive enfraquecido à derrota eleitoral ou já deveríamos considerá-lo uma doença terminal? Terá o regresso da esquerda ao poder, depois da trágica experiência das ditaduras corporativo-militares, terminado definitivamente? A Argentina está dizendo ao Brasil e a todas as nações que o que acontece lá é um destino condenado para todas as pessoas? Como dizem aqui no Brasil: «Eu sou você amanhã» (Hoje eu sou, você amanhã).

Acredito verdadeiramente que estamos a assistir à revelação da incapacidade radical da esquerda global para enfrentar com sucesso a ofensiva da extrema direita, aparentemente antissistema e, de fato, ao serviço do capitalismo anômico e beligerante.

E, se esta hipótese for plausível, devemos realmente preocupar-nos não só com o aumento da violência estatal, mas sobretudo com a impotência prática e teórica da oposição.

Diagnosticar a morte política do kirchnerismo pode ser prematuro, porque os peronistas têm um número significativo de senadores e deputados eleitos em 2023 e, além disso, elegeram com os seus aliados os governadores de oito províncias – incluindo a mais importante, a de Buenos Aires. Estes números certamente criarão dificuldades políticas ao poder de Milei.

Mas apesar destes dados, o contexto argentino – em que a oposição não parece ter sido mortalmente ferida – repete-se, fazendo as devidas distinções, no Brasil, no Peru, no Equador e no Uruguai.

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Obviamente, são crises diferentes, sofrimentos sociais específicos, percursos políticos distintos. Por esse motivo, a identificação de Milei com Bolsonaro não é aceitável. Consideremos, por exemplo, quão importante é o apoio dos militares, evangélicos e católicos tradicionalistas para Bolsonaro no Brasil e como esta composição não aparece no eleitorado de Milei. Ou como, apesar da agressividade de Milei durante a campanha eleitoral, ao contrário do Brasil, não houve uma avalanche digital de fake news, nossas farsas, para manipular o eleitorado.

Somos, no entanto, obrigados a pensar que existe uma sintomatologia comum: na verdade, tanto a direita convencional de Lacalle Pou no Uruguai, como a extrema direita de Bolsonaro no Brasil e Milei na Argentina, de Daniel Noboa no Equador, de Dina Boluarte no Peru, germinam e explodem a partir da crise dos governos progressistas ou de esquerda. O erro da esquerda, no final das contas, é sempre o mesmo: montar estratégias neoliberais com descontos e correções populares. Mais cedo ou mais tarde a aposta não funciona e o que resta é a violência predatória e desenfreada do capital.

Nessas sociedades, a luta dos movimentos sociais não alinhados, em favor dos direitos ambientais, da vida e dos territórios dos povos originários e dos agricultores, contra o agronegócio e a mineração, contra a comercialização da natureza, é bastante reduzida. Experiências agroecológicas e antipatriarcais. Contra o capital.

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E parece que os partidos progressistas ainda não aprenderam a reconhecer o quanto as sociedades latino-americanas mudaram. Confrontados com uma mentalidade generalizada, que esquece as ditaduras corporativo-militares, a violência colonial e chega a considerar aceitáveis ​​os delírios da extrema direita, eles não reagem adequadamente e perdem-se na repetição acrítica de práticas e narrativas obsoletas.

Esta mudança nas subjetividades populares, que introjetam a loucura da extrema direita, hoje também desafia duramente o catolicismo argentino. Não se trata, em primeiro lugar, das graves ofensas de Milei contra o Papa Francisco ou das recentes reconciliações após a vitória eleitoral. Trata-se sobretudo do que acontece nos bairros e vilas, tradicionalmente católicos, que, como em La Cava e San Isidro, votaram a favor de Milei.

Talvez até a Igreja argentina, surpreendida pelas escolhas políticas dos seus fiéis, esteja a viver o mesmo impasse que os peronistas e a esquerda. Devemos, novamente, como sempre, perseverar na companhia do Espírito e exercer o poder da Profecia.

Fonte:
Texto – Instituto Humanitas Unisinos
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Imagem – Reuters.

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