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História e consciência de classe, cem anos depois

Por CELSO FREDERICO

Prefácio do livro recém-lançado, organizado por José Paulo Netto

Dialética e reificação

Cem anos depois, História e consciência de classe continua sendo a obra de filosofia marxista mais influente da história. A paixão revolucionária presente nos diversos ensaios que compõem o livro, escritos entre 1919 e 1922, exerceu um fascínio duradouro que não deixa o leitor indiferente.

Fruto do impacto da revolução russa e da expectativa de seus desdobramentos na Europa, História e consciência de classe é um ajuste de contas com o reformismo na política e na teoria. Contra a perspectiva evolucionista, que defendia o caminho pacífico para a transição ao socialismo, a revolução russa era uma realidade candente ao colocar a perspectiva revolucionária novamente na ordem do dia. Contra o determinismo mecanicista que orientava a Segunda Internacional, a dialética, a luta dos contrários, foi chamada à cena.

A crítica da visão linear da história, do reformismo e do mecanicismo, conduziu a uma surpreendente redescoberta da dialética. O empenho, nesse momento, consistia em realçar o caráter revolucionário do método e descartar o sistema conservador que o envolvia e tolhia o subversivo desenvolvimento da dialética.

Hegel, até então tratado como “cachorro morto”, como disse em seu tempo Marx, era agora reabilitado em nome da revolução. Na Rússia revolucionária dos anos 1920 travou-se uma disputa sobre o significado da dialética. Entre os seus defensores (os “dialéticos”), destacava-se Deborin e entre os “mecanicistas”, L. I. Akselrod. Paralelamente, na Alemanha, Karl Korsch publicou Marxismo e filosofia. Na Itália, Gramsci, preso em 1926, criticava o pensamento não-dialético de Bukhárin e, ao mesmo tempo, procurava diferenciar-se de seu antigo mestre, Croce, representante maior do hegelianismo na filosofia e do liberalismo na política.

Revolução e dialética, então, passaram a caminhar juntas. Lênin, no texto que ficou conhecido como o seu Testamento, fez uma surpreendente crítica a Bukhárin, o mais querido entre os bolcheviques. Apesar de realçar seus méritos, Lênin considerava-o incapaz de dirigir o Estado Soviético porque “jamais estudou e creio que jamais compreendeu por completo a dialética”. Não deixa de ser significativo, embora muito estranho, que, para dirigir o Estado, fosse necessário estudar e compreender a dialética…

De todas essas tentativas de aproximação de Marx com Hegel, a mais ousada é História e consciência de classe. No posfácio de 1974, Gyögy Lukács observou que o livro foi escrito “no mais puro espírito hegeliano” pois “o seu fundamento filosófico último é constituído pelo sujeito-objeto idêntico realizando-se no processo histórico. É verdade que no próprio Hegel o sujeito-objeto nasce por via lógico-filosófica, atingindo o espírito absoluto, o grau supremo da filosofia, com o recolher da alienação [Entaeusserung], com o regresso a si mesmo da consciência de si, realizando assim o sujeito-objeto idêntico. Para História e consciência de classe, pelo contrário, este processo deve ser social e histórico, e culmina no fato de o proletariado atingir este estádio na sua consciência de classe ao tornar-se sujeito-objeto idêntico da história”.

A pretendida identidade, que em Hegel se realizaria no longínquo momento do Espírito Absoluto, em György Lukács era uma realidade efetiva anunciada pela revolução de 1917. Unidade sujeito-objeto, passagem do reino da necessidade para a liberdade, fim da alienação, realização da filosofia… Este último ponto chamou a atenção de Leon Trótski em 1928. Às voltas com a dura realidade e o desafio de construir o socialismo, ele lembrou no texto “As tendências filosóficas do burocratismo” que Gyögy Lukács “Arriscou-se a anunciar que, com o início da revolução de Outubro, que representava o salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, o materialismo histórico havia deixado de existir e havia deixado de responder às necessidades da era da revolução proletária. Não obstante, rimos muito com Lênin desse descobrimento, que, para dizer moderadamente, era, pelo menos, prematuro”.

A ironia do revolucionário logo mais seria substituída pela censura. György Lukács foi acusado de idealista por considerar a natureza uma categoria social, de negar a teoria do reflexo, de desviar-se da ortodoxia em sua crítica a Engels, de ser voluntarista etc. Quanto à dialética, Stálin instituiu o diamat em 1938 como doutrina oficial: Hegel, então, passou a ser considerado o teórico da Restauração, portanto, um filósofo reacionário que nada tinha a ver com o marxismo.

Sofrendo pressão de todos os lados, György Lukács renegou a obra em diversas autocríticas protocolares – condição, segundo ele, para continuar atuando no movimento comunista. A tentativa de defender a obra de seus críticos gerou o livro Reboquismo e dialética, não publicado à época, saindo apenas em 1996 na Hungria (a edição da Boitempo é de 2015). A ruptura com as ideias de História e consciência de classe, entretanto, só se efetivou a partir dos anos 1930, quando Gyögy Lukács leu pela primeira vez os Manuscritos econômico-filosóficos de Marx. A partir de então, Lukács procurou desvencilhar-se do idealismo hegeliano e caminhar rumo a uma concepção ontológica e materialista.

Além da defesa da dialética, há um outro conceito no livro destinado a fazer história no pensamento social do século XX: “reificação”, conceito também presente no livro de Isaak Illitch Rubin, A teoria marxista do valor.

Marx, no capítulo sobre o fetichismo da mercadoria de O capital, ao estudar a transação econômica, havia denunciado o caráter mistificador e desumanizante do capitalismo. Gyögy Lukács retomou o tema e o ampliou para todas as esferas da vida social, pois, para ele, a relação mercantil no capitalismo era “o protótipo de todas as formas de objetividade e de subjetividade”. Desse modo, as relações entre base e superestrutura passaram a ser moldadas pelo processo de reificação – uma novidade nas interpretações de Marx, que posteriormente orientará o pensamento de Theodor Adorno.

A teoria da reificação, em História e consciência de classe, é conectada com o processo de racionalização, tal como desenvolvido pelo antigo mestre de Lukács, o sociólogo Max Weber. Esta junção entre reificação e racionalização, entre Marx e Weber, fez de História e consciência de classe o marco de uma corrente de pensamento que Maurice Merleau-Ponty batizou de “marxismo-weberiano”.

Apoiando-se em Marx, Gyögy Lukács desenvolve a tese segundo a qual a reificante relação mercantil capitalista “penetra cada vez mais profundamente na consciência do homem”. Além dessa invasão na subjetividade humana, o processo de racionalização – e aqui Gyögy Lukács acompanha Max Weber – abarca também todas as instituições sociais: Estado, direito, administração, burocracia etc.

A aproximação de autores tão diferentes foi saudada com entusiasmo por alguns estudiosos como Michael Löwy, no livro A jaula de aço (Boitempo), que celebra as “afinidades eletivas” entre ambos. Foi também, incorporada no refinado ensaio de Ricardo Musse, reproduzido neste volume, que acompanha pari passu o movimento da reificação e das antinomias do pensamento burguês, interpretando História e consciência de classe como momento decisivo na superação dos impasses que paralisavam o desenvolvimento da filosofia moderna.

Entre os críticos da “weberização” de Marx, encontramos, entre outros, um discípulo de Gyögy Lukács, István Mészáros, o qual afirma que “o mito da racionalidade” teria “embotado o senso crítico de Lukács”, fazendo-se presente inclusive na Ontologia do ser social. Mészáros lamenta o fato de seu antigo mestre nunca ter se livrado totalmente do fantasma de Weber.

Seja qual for a posição tomada, há um aspecto decisivo a ser ressaltado: a junção dos dois autores possibilitou a passagem da crítica da economia política à crítica da cultura. Foram muitos os autores que seguiram esse deslocamento, formando uma corrente que passou a ser conhecida como “marxismo ocidental”.

Lucien Goldmann, por exemplo, retomou a teoria das reificação-racionalização para, com ela, fundamentar a sua sociologia da cultura. A esse veio teórico acrescentou as ideias do Lukács pré-marxista contidas nos livros A alma e a forma e a Teoria do romance.

Os teóricos de Frankfurt, tendo à frente Theodor Adorno, construíram uma teoria social, a “teoria crítica”, para com ela fazer um diagnóstico profundo do mundo ocidental. Theodor Adorno produziu textos brilhantes de crítica literária, de música, de estética e uma implacável crítica da indústria cultural. A vinculação com a tradição hegeliana, entretanto, coabita conflitivamente na obra de Theodor Adorno com a recusa da identidade sujeito-objeto, da reconciliação. Este é o fundamento da “dialética negativa” de Adorno, uma dialética que rejeita a unificação dos contrários, a apaziguadora síntese. Nas últimas décadas, o legado adorniano vem sendo atualizado por Fredric Jameson em suas pesquisas sobre o pós-modernismo.

Em direção contrária, os adversários da dialética hegeliana dirigiram críticas iradas a Gyögy Lukács. Todo o pensamento estruturalista francês voltou-se contra aquilo que eles chamavam de “lógica da identidade”. O representante marxista dessa corrente, Louis Althusser, encampou essa crítica originariamente voltada à fenomenologia e ao existencialismo. Contra a “lógica da identidade”, que segundo a fenomenologia permitia a passagem da experiência para o conhecimento, Louis Althusser propõe o “corte epistemológico”.

Não haveria, assim, o trânsito entre o vivido e o conhecimento (“lógica da identidade”, “unidade dos diversos”), mas uma ruptura epistemológica. A ciência não reflete o real, a realidade vivida, ela não reproduz o objeto: ao contrário, o objeto passa a ser construído pelo pesquisador. Expurgada a herança hegeliana incrustrada na obra de Marx, o marxismo deveria transformar-se num discurso científico.

Outra vertente crítica do hegelianismo desenvolveu-se na Itália com Galvano Della Volpe e seus discípulos, Lucio Coletti, Mario Rossi e Mario Dal Pra. A referência aqui não é a apropriação de Hegel pelo existencialismo, mas a crítica da tradição historicista italiana representada principalmente por Croce e Gramsci. Nesta, todo conhecimento é conhecimento histórico, já que a natureza não é vista como dura alteridade, mas como uma categoria social, tal como em História e consciência de classe. A defesa do caráter científico e do materialismo voltou-se contra o historicismo hegeliano, o humanismo e a teoria da alienação.

O vínculo Hegel-Marx é enfaticamente negado e a “dialética especulativa” do primeiro, que partia do abstrato ao concreto para retornar ao abstrato, é substituída pela “dialética científica” de Marx exemplificada pelo movimento “concreto-abstrato-concreto”, tal como interpreta Della Volpe na “Introdução” de 1857 à Crítica da economia política. Marx, segundo afirma, nada deve a Hegel e à sua dialética, pois seguia o método científico inaugurado por Aristóteles e Galileu, baseado no princípio da não-contradição que orienta as ciências experimentais.

Das formas mais diversas possíveis, História e consciência de classe conduziu o debate intelectual do século XX e continua a desafiar o pensamento social no novo século.

Um livro com essa força bem merece ser celebrado. A competência e erudição de José Paulo Netto soube recolher textos relevantes sobre História e consciência de classe. As análises tão diferentes de Lucien Goldmann, Michael Löwy, Nicolas Tertulian, Slavoj Zizek, Marcos Nobre, Koenraad Geldof, Mauro Iasi, Eduardo Sartelli, Antonino Infranca, Henrique Wellen, Guido Oldrini e Ricardo Musse foram convocadas para oferecer um panorama completo de um livro centenário que continua desafiando a inteligência de seus leitores.

*Celso Frederico é professor aposentado sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula).


Referência

José Paulo Netto (org.). História e consciência de classe, cem anos depois. São Paulo, Boitempo, 344 págs.

Fontes:
Texto –
A Terra é Redonda.
Imagem – Boitempo Editorial.

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