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Psicanálise e ciência: chega de bobagem

O livro “Que Bobagem!”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, obteve notoriedade pelos ataques que faz à psicanálise e outros saberes, inscrevendo-os na categoria de “pseudociências” — que seriam indignas de crédito por não se submeterem ao escrutínio científico.

É preciso submeter o próprio livro ao controle objetivo de suas proposições. Surpreende que os autores não tenham procurado embasar com fatos seu argumento de que a psicanálise não se submete à testagem científica. Uma simples consulta online à Cochrane Library, a prestigiosa coleção de bancos de dados e evidências em medicina, mostra sob a rubrica “psicoterapias psicodinâmicas” (técnicas derivadas da psicanálise), apenas entre os anos 2000-23, 670 pesquisas, das quais 188 especificamente dedicadas ao estudo da eficácia desses tratamentos.

Para um exemplo recente, a revista World Psychiatry traz em junho de 2023 uma rigorosa metanálise sobre as psicoterapias psicodinâmicas. A conclusão é que estas provaram “ser um tratamento com suporte empírico para transtornos mentais comuns”, atingindo “recomendação forte”. Esse artigo soma-se a muitos outros demonstrando a eficácia das terapias psicodinâmicas, publicados em periódicos como a Lancet Psychiatry e o American Journal of Psychiatry.

Quanto à capacidade dos principais conceitos da psicanálise de serem pesquisados pela neurobiologia, é impressionante que os autores do livro desconheçam que, em 2004 e 2007, a revista Science publicou dois estudos independentes sobre os mecanismos neurais do conceito psicanalítico de recalque inconsciente. O primeiro artigo cita Freud como motivação da pesquisa na primeira linha do resumo! Ambos corroboram a noção de uma supressão ativa de memórias, pela ação inibitória do córtex pré-frontal sobre hipocampo e amígdala.

Outra omissão incompreensível são os diversos estudos publicados em revistas como Science, Nature e Nature Communications sobre as propriedades associativas das representações linguísticas no cérebro, totalmente compatíveis com as hipóteses psicanalíticas sobre a linguagem, indo da semântica até o nível dos fonemas, tão estudado por Freud e Lacan. Essa negligência atinge também a ciência nacional, pois o grupo de pesquisa coordenado por um dos autores deste artigo [Sidarta Ribeiro] publicou diversos estudos quantitativos sobre a estrutura do discurso inspirados na teoria psicanalítica. Tais estudos, como por exemplo o artigo publicado em 2017 na revista Nature Schizophrenia, mostraram que relatos de sonho são efetivamente um “caminho real para o inconsciente” como proposto por Freud, pois permitem um diagnóstico precoce da esquizofrenia, o que não ocorre com outros tipos de relato.

Além disso, a estrutura da linguagem — não o que se fala, mas de que modo se fala — mostrou-se um marcador fidedigno da esquizofrenia, tal como proposto por Lacan em seus estudos sobre as psicoses.

O suposto isolamento científico da psicanálise é mero negacionismo. Argumentos semelhantes aos aqui elencados podem também ser feitos em relação a outros saberes atacados no livro, como a acupuntura, cuja ação sobre o eixo vago-adrenal foi publicada pela revista Nature em 2021.

A vitória sobre a Covid-19 e o fascismo nos permite sair do modo “frente ampla”, permitindo divergências sem comprometer a luta democrática. Respeitando o valioso papel de Pasternak na pandemia, a tentativa de usar o lugar de fala da ciência para lacrar um embate unilateral, raso e generalizado contra saberes tão diversos e importantes como a psicanálise e a acupuntura, é uma grande bobagem.

Decerto útil para vender livros, mas não para qualificar o debate.

  • Artigos aqui mencionados e outros estudos relacionados à psicanálise em revistas científicas podem ser acessados aqui!

Sidarta Ribeiro
Neurocientista, fundador e professor titular do Instituto do Cérebro da UFRN, é pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e autor de “O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho” (Companhia das Letras)

Mário Eduardo Costa Pereira
Professor titular do Departamento de Psiquiatria da Unicamp


Fonte: Opinião – Sidarta Ribeiro e Mário Eduardo Costa Pereira: Psicanálise e ciência: chega de bobagem.

Imagem: Divulgação Amazon.

33 Comentários

  1. Sueli Mendonça

    Perfeito. Não sei quem ortogou a procuração aos autores do livro para falarem em nome da “ciência”. E lamentavelmente falaram bobagem. Sempre discordei sobre a opinião de ambos contra acupuntura, ciência milenar, e contra a fitoterapia, da qual originou a farmacologia moderna…
    Agora mais este equívoco sobre psicanálise e psicoterapias.

  2. Suely Keller

    Para poder ter este lugar de fala sobre os efeitos da psicanálise é preciso passar pela experiência de ser analisado. A teoria e indispensável numa formação psicanalítica, mas é o fato de ter o seu inconsciente manifestado em uma análise diante de seu psicanalista que nos torna aptos para poder falar sobre o que é a psicanálise e o seu alcance em relação aos nossos sintomas.

    • Artur

      Parabéns Suely pelo seu comentário, exatamente. Os autores demonstram conhecimento raso em relação a Psicanálise. Com certeza, se passarem por um processo de análise, além é claro da resistência que é nítido que os mesmos possuem, dará ai ao psicanalista horas de análise aos dois autores, que na minha opinião são apenas marketeiros querendo causar polémica e vender livros.

  3. AMILTON LUIS FIM LIMA

    Não tem como negar a ampla defesa da Dra. Pasternak contra a pseudociência e seus vastas argumentos contra tantas bobagens que se faz uso sem a comprovação científica. Já fiz quase tudo que a Dra. relata no seu livro e concordo com sua opinião.

  4. Dionea vasconcellos

    Na verdade, tudo indica que , assim como os pacientes resistem á verdade do inconsciente ,esse livro.parece demonstrar publicamente a resistencia inconsciente dos autores Negam ,negam e negam

  5. Monia

    Estes ataques não são novidades, Freud foi atacado, Lacan separou-se da psiquiatria tradicional e recebe críticas atualizadas hoje. Está na hora de voltarmos a falar sobre filosofia das ciências, críticas aos métodos, e principalmente a aproximadamente da ciência com o capitalismo. E urgente. Alguns cientistas são afetados, empolgados demais na defesa, faltando criticidade quanto os limites da ciência, e a ética na ciência. Temos excelentes cientistas, como psicalistas e péssimos profissionais e isso não inválida a classe toda.

  6. Marcos Zepon

    Método científico para se obter teoria científica, eis o quê Pasternak apresenta!
    Qual o método usado na psicanálise?! Especulação filosófica ( que é legítima, mas é pseudociência já que não usa modelo/metodo científico). Aliás por que a necessidade de cientifismo na psicanálise?! Terapias são legitimas e funcionam, isto é o cerne do empirismo ( quê é um importe fator dentro do modelo científico de obeter conhecimento, mas não é seu definidor). Observar e ver que ” deu” certo, não é metodo científico. O neurocientista sabe disto, correto?! Empirismo isolado é prática e é quando funciona e ninguém sabe o porquê. Um desafio filosofico e etico: Algumas torturas funcionam pra modificar o comportame animal e humano. Qual a Teoria? Era cientifico a Drapetomania que, há 150 anos, a psiquiatria classificava a doença mental que predispunha os escravos dos EUA para “a estranha tendência para fugir dos seus senhores”, cuja cura eram chibatadas. Repito, o quê é metodo científico?! Por que psicanálise tanto precisar deste valor?!

  7. Maria Helena Sant Ana Mandelbaum

    Li o livro da Dra Natália, inclusive para poder comentar algumas de suas colocações feitas nas mídias por ocasião da Pandemia. Infelizmente a autora se deixou encantar pelo fascínio das luzes da ribalta em função de sua presença constante nas mídias . Tem mérito por sua defesa da ciência contra o negacionismo na Pandemia. Mas não usa o mesmo critério para julgar áreas que talvez desconheça. É preciso lembrar que a ciência tem métodos apropriados de pesquisa para cada campo. Alguns são passíveis de medir, contar, olhar. Outros precisam ser interpretados a partir de referenciais e bases epistemológicas. Ha ciências exatas, biológicas e humanas. A Psicanálise tem um pouco de cada, daí o desafio de se prender a métodos quantitativos apenas. Existem diferentes métricas e regular para medir o conhecimento. Talvez Dra Natália só conheça uma delas e tenta submeter todo o conhecimento humano a ela. Não é científico nem ético tal postura.

  8. Gustavo Maia Souza

    Numa de minhas aulas na disciplina de Filosofia e Metodologia da Ciência “brinquei” com meus alunos que o livro de Pasternak e Orsi era um livro sobre pseudociência escrito por pseudocientistas.
    O tema, sem dúvida, é relevante, mas a abordagem do livro reflete uma concepção muito estreita sobre a ciência e sia epistemologia. O que, de fato, não me surpreende analisando o CV Lattes da primeira autora. Esses exageros e certo sensacionalismo do livro não ajuda no debate tão necessário entre a academia com a sociedade, e reforça a nossa atual polarização.

  9. Helio dos Santos

    Concordo plenamente com esse artigo. Pasternak e Osis e Carlos Orsi, foram muito infelizes nas suas colocações, para não dizer totalmente desrespeitosos com tantos profissionais competentes. Eles se colocaram com os donos da verdade e do saber.

  10. Ana Elisa Padula

    O fato é que a bobagem deu certo. O livro se vende com essa estratégia advinda da fama global da autora. E agora ela toma para si ,orgulhosa,a façanha de colocar um livro “sobre ciência” como entre os mais vendidos do país. O projeto inocente de discutir ciência na bancada do laboratório na hora do café, se adapta bem melhor à erudição da autora. Ali sim, cada um fala o que “acha”. Publicar um livro com esse conteúdo, alegando propor uma discussão em bases científicas parece um desrespeito a pesquisadores sérios.

  11. Rubia Mar Nunes Pinto

    Muito bom! Sempre que alguém se dispõe a classificar ciências (ou qualquer coisa) acaba construindo hierarquias que servem tão somente para controle e poder.

  12. Fábio Nunes

    Apesar de tudo, ambos os lados são somente discursos. Sob a égide da polêmica, a visão demonizadora da psicanálise é um descaminho… No entanto, alçar as “abordagens psicodinâmicas” a um estatuto de ciência plena é forçar demais a barra… Menos paixão político-teórica, mais sobriedade ético-metodológica, por favor…

  13. Maria Cristina Sanches Amorim

    O título do livro em tela é suficientemente tolo para não me levar a lê-lo. Não tenho tempo para bobagem. Mas acompanho com prazer o debate sobre ciência.

  14. Elaine

    Vejo com enorme decepção e espanto a descrença da psicanálise. Somente quem já passou pela experiência de ser psicanalizado conhece a eficácia e a indiscutível contribuição deste tratamento. Abaixo as conversas que não agregam.

  15. Diego Lico

    Sobre passado! a Ciência cativou, a Ciência cresceu…tomou envergadura…pegou prumo…
    Sobre o presente! a Ciência precipitou…floculou…floculos de variados tamanhos…
    Sobre futuro! a Ciência poderá crescer…envergar…aprumar…flocular…agregar…e assim vai…espero que esteja sempre em um patamar maior que o anterior…mas vai depender do que faremos com ela!!! cuidem dela…aprendam com ela…não abuse…a Ciência pede respeito!

  16. Maria Da Graça Nunes Carrion

    Que pena Dra.Natália, tinha a sra em tão alta conta pelo excelente trabalho que fez durante a pandemia…mas agora a sra se precipitou e e talvez por isso acabou afetando um pouco uma linda biografia…uma pena…

  17. Ester Santana

    Que pena, que não entenderam as Teorias de Freud, pois elas tratam de questões profundas do inconsciente humano.A Psicanálise trabalha as raízes inconscientes do sujeito, norteando o consciente, tratando das demandas emocionais.
    Não se pode entender o Id, o Ego e o Superego,sem o processo da análise terapêutica e suas intervenções.As Teorias Psicanalíticas tão relevantes e necessárias, que hoje, fazem parte de algumas formações superiores e, são temas de estudos e pesquisas em especializações, nas Universidades e Institutos de todo o mundo.Por isso, quanto ao posicionamento dos autores: QUANTA BOBAGEM!!

  18. José Ramon Soares Santana

    Freud gênio. É impressionante, como pessoas sem capacidade de construir sua própria história, precisam utilizar método pouco convencional para tentar buscar notoriedade. BOBAGEM tem tudo a ver com o contexto explicitado, embora faltou um complemento, por quê a psicanálise incomoda tanto??????? Gente falando mal e sobrevivendo dela. Inveja e recalque”FREUD EXPLICA” !!!. VIVA PSICANÁLISE.

  19. GUSTAVO V LUEDEMANN

    Tenho grande admiração pelo trabalho realizado por Natália Pasternak, na luta contra o estúpido negacionismo, durante o auge da pandemia do Covid-19, promovido pelo desastrado Governo Bolsonaro. No entanto, foi decepcionante ver a arremetida contra a Psicanálise, como se sua prática devesse limitar-se à metodologia da física tradicional. Parece que essa exigência, segundo Natália e Carlos Orsi, deveria estender- se também à análise profunda de Jung, que foi além de Freud, sobretudo ao estender- se além do inconsciente pessoal, ao inconsciente coletivo e seus arquétipos. O apego da metodologia científica aos padrões da física tradicional representa, na verdade, um obscurantismo que nega até o avanço da própria física quântica. O físico quântico, Fritjof Capra, em sua obra “O ponto de mutação” é no ” Tao da Física” reconhece que Jung, ao descrever o inconsciente coletivo, usou conceitos surpreendentemente semelhantes aos que os físicos contemporâneos empregam em suas descrições dos fenômenos subatômicos” e que “as teorias e modelos principais da física moderna levam a uma visão de mundo que é internamente consistente e está em perfeita harmonia com as concepções do misticismo oriental”

  20. Diogo Almeid

    Interessante notar que os próprios autores desse texto mencionam as teorias psicanalíticas como sendo “compatíveis” com dados empíricos, ou “inspiradoras” de pesquisas em neurociência. Isso pode ser verdade e ainda assim a psicanálise pode ser uma pseudociência. Inspiração pode vir de vários lugares, música, arte, filosófia, psicanálise, etc. Mas inspiração não faz por si só ciência. A questão é se a construção teórica dentro da prática psicanalista se dá de maneira minimamente compatível com princípios de falsificabilidade, etc. A resposta parece ser não. Isso não quer dizer que não tenha validade clínica. Como os autores notam, há efetivamente algumas pesquisas sobre a validação clínica de tipos de psicoterapias diversas, incluindo a algumas formas de psicanálise, e algumas meta-análises realmente mostram que há um efeito positivo. É extremamente importante que esse tipo de pesquisa seja incentivada, e que passe a ser praxe do desenvolvimento da psicanálise. Talvez aí ela possa sim se tornar uma prática baseada em evidências.

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