por: Érika Cristina Nesta Silva –
Um olhar sobre o impacto dos seres humanos a partir das formas destruídas, produzidas e/ou alteradas na superfície terrestre.
Nos últimos anos temos visto, em diversos meios, o quanto a sociedade tem alterado as características naturais de diferentes paisagens, no decorrer do processo de produção do espaço. Nesse sentido, incluem-se as modificações nos aspectos climáticos, da biodiversidade, dos solos, dos relevos, dos componentes geológicos, etc.
Com particular atenção à geomorfologia, geologia e pedologia, a perspectiva dos terrenos tecnogênicos surge como uma possibilidade de classificar e interpretar os resultados da ação da sociedade nos processos e elementos relativos à superfície terrestre.
Cabe observar que quando falamos de “sociedade” não estamos nos referindo a um humano genérico, mas sim, ao estudar essas e outras modificações na paisagem, precisamos sempre esclarecer de QUAL ser humano estamos falando, ou melhor, a qual classe e fração de classe social pertence, especificamente, esses seres humanos que estão causando as modificações e aqueles que estão se beneficiando ou sofrendo as consequências dessas ações.
Os Terrenos Tecnogênicos
A perspectiva de estudo considerando especificamente a terminologia “Terrenos Tecnogênicos” passa a ter destaque no Brasil em 2014 (PELOGGIA et al., 2014), a partir de um artigo publicado com o intuito de propor e discutir uma classificação geológica de terrenos artificiais, ou seja, daqueles terrenos formados e/ou alterados pela ação do ser humano, em situações que resultaram na intensificação de processos erosivos e deposicionais diversos, cortes e aterros originados por ação mecânica direta, além da própria alteração in situ, a exemplo de contaminações, compactações, etc.
Neste processo de discussão e classificação, os autores utilizaram diferentes referenciais, dentre os quais de origem britânica, estudos soviéticos e do leste europeu. Portanto, houve no decorrer da escrita desse artigo, a tentativa de abarcar as diversas situações de geotecnogênese, referente a alterações nos solos, nos sedimentos, nos aspectos geológicos, como cortes nas rochas e mineração, e no relevo. Essa classificação passou por algumas atualizações e hoje boa parte dos trabalhos utilizam a publicada em Peloggia (2017) (Quadro 1).
Geotecnogênese : conjunto da ação humana transformadora sobre o ambiente, envolvendo a alteração dos processos da dinâmica externa, sejam estes erosivos ou deposicionais, resultando na criação de formas de relevo (tecnogênico) e na formação dos depósitos tecnogênicos. (PELOGGIA; OLIVEIRA, 2005).
O Antropoceno
Ao passo que não dá mais para negar que a sociedade, com suas diversas possibilidades técnicas, tem imprimindo sua marca nas paisagens, surge no início dos anos 2000 a ideia do Antropoceno (CRUTZEN; STOERMER, 2000; CRUTZEN, 2002).
Interpretações e proposições mais recentes, que vem sendo discutidas em diversas esferas, como dentro da Subcommission on Quaternary Stratigraphy (em particular os trabalhos de pesquisadores que fazem parte do Anthropocene Working Group) trabalham com a possibilidade do Antropoceno ser uma nova época geológica, ainda incluída no período Quaternário.
Esta nova época Geológica teria provável início na metade do século XX, momento a partir do qual intensificam as “assinaturas”, ou melhor, evidências das ações da sociedade nos solos, na elaboração de depósitos artificias, na presença de novos tipos de “minerais” em diversos ambientes, em “antroturbação” (interpretada como uma bioturbação de origem humana), em alterações relativas à elevação do nível do mar, nas alterações geoquímicas na criosfera e nos espeleotemas, além de contaminações nos solos e precipitações de radiogênicos, em particular os específicos dos bombardeios e testes nucleares (WATERS et al., 2014).
Mas quais são as possíveis relações dos terrenos tecnogênicos com o Antropoceno?
Uma das principais relações que podemos destacar é que boa parte das evidências relativas ao Antropoceno podem ser encontradas em terrenos tecnogênicos de agradação, como a presença de novos materiais, especialmente plástico e concreto (este último não necessariamente novo, mas mais amplamente utilizado em construções pós Segunda Guerra Mundial, como em reconstruções em cidades europeias). Estes materiais são encontrados em diferentes ambientes (Figura 1), inclusive em aterros, bancos de sedimentos em áreas de planícies aluviais (isso só para destacar a relação com terrenos tecnogênicos, fora a presença, especialmente dos plásticos, em ambientes que teoricamente não possuem ocupação humana direta, mas que foram transportados pelos oceanos).
De acordo como Peloggia (2017), do ponto de vista geológico-geomorfológico, os terrenos tecnogênicos podem ser classificados como em quatro classes:
Agradação – resultantes da acumulação de material
Degradação – remoção ou deslocamento de material
Modificados – derivados da transformação in situ do material
Complexos – terrenos com sobreposição de diferentes ações (agradação e/ou degradação).
Muitos desses materiais, cujo uso cresce vertiginosamente após a metade do século XX (Figura 2), permanecerão nos ambientes como testemunho, numa perspectiva futura arqueológica, das características das sociedades atuais. Ainda em relação a essas deposições, Waters et al. (2018) trabalham com a ideia de que essas áreas de deposições originadas pela ação humana podem ser consideradas entre os possíveis paleoambientes que abarcam marcadores estratigráficos relativos ao Antropoceno.
Já no caso de terrenos que tiveram retirada de material em subsuperfície para instalação de infraestruturas como tubulações e linhas de metrô, em muito se conectam com a ideia da “antroturbação”.
Além disso, mesmo áreas teoricamente “naturais”, com pouca ou nenhuma mobilização de materiais, nas quais os terrenos tecnogênicos são classificados como “modificados”, podem ter sofrido processos de contaminações e modificações de suas características geoquímicas, como no caso da precipitação de radiogênicos relativos aos testes nucleares.
Há, portanto, diversas possibilidades de conexão dos estudos acerca dos terrenos tecnogênicos com a proposta do Antropoceno como nova época geológica, bem como essas possibilidades podem ser ampliadas conforme os estudos avancem nessa área, a partir do reconhecimento de novos tipos e níveis de interação da sociedade com os demais componentes e processos das paisagens.
Agradecimento ao apoio financeiro: Processo 2013/01302-0 e Processo nº 2019/21885-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
“As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.
Referências bibliográficas
CRUTZEN, P. J. Geology of mankind: the Anthropocene. Nature 415, 23, 2002.
CRUTZEN, P. J. & STOERMER, E. F. The Anthropocene. Global Change Newsl. 41, p. 17–18, 2000.
PELOGGIA, Alex Ubiratan Goossens. O que produzimos sob nossos pés? Uma revisão comparativa dos conceitos fundamentais referentes a solos e terrenos antropogênicos. Revista Geociências-UNG-Ser, v. 16, n. 1, p. 102-127, 2017.
PELOGGIA, A. U. G.; OLIVEIRA, A. M. S. Tecnógeno: um novo campo de estudos das geociências. I Encontro de Tecnólogos. ABEQUA, 2005
PELOGGIA, A. U. G.; OLIVEIRA, A. M. S.; OLIVEIRA, A. A.; SILVA, E. C. N., NUNES, J. O. R. Technogenic geodiversity: a proposal on the classification of artificial ground. Revista Quaternary and Environmental Geosciences, Curitiba, v.5, n.1, p. 28-40, 2014.
SILVA, E.C.N. Reconstituição Geomorfológica do Relevo Tecnogênico em Presidente Prudente-SP. 2017, 246f. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista.
WATERS, C. N.; ZALASIEWICZ, J.; SUMMERHAYES, C.; FAIRCHILD, I. J.; ROSE, N. L.; LOADER, N. J.; SHOTYK, W.; CEARRETA, A.; HEAD, M. J.; SYVITSKI, J. P. M.; WILLIAMS, M.; WAGREICH, M.; BARNOSKY, A. D.; ZHISHENG, A.; LEINFELDER, R.; JEANDEL, C.; GAŁUSZKA, A.; IVAR DO SUL, J. A.; GRADSTEIN, F.; STEFFEN, W.; MCNEILLS, J. R.; WING, S.; POIRIER, C.; EDGEWORTH, M. Global Boundary Stratotype Section and Point (GSSP) for the Anthropocene Series: Where and how to look for potential candidates. Earth-Science Reviews, v.178, p. 379–429, 2018.
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Texto: Érika Cristina Nesta Silva
Edição: Diego Fernandes Terra Machado