Lateritas – múltiplas definições, múltiplos usos

por: Francisco Ladeira

Resultado da ação intensa do intemperismo, as lateritas são importantes indicadores de condições ambientais, com valor cultural agregado e um conceito mutante ao longo da história.


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O termo laterita foi proposto por Buchanan em 1807, para identificar materiais, que na Índia, eram extraídos dos finais de vertentes, da parte inferior dos perfis de solos, que quando expostos ao sol tornavam-se extremamente duros e eram utilizados como material de construção (tijolos, vigas estruturais, base de rodovias e de estradas de ferro).

O uso do termo laterita foi se alterando ao longo do tempo, e chega mesmo a ser indicado que não seja usado, dado a diversidade de possibilidades de interpretações. Não é nosso objetivo aqui discutir esse e outros termos que surgiram ao longo do tempo, apesar de indicarmos abaixo diversos artigos que tiveram esse objetivo.

Usamos aqui também o termo ferricrete, em sua definição inicial, ou seja, qualquer material enriquecido em ferro em relação ao seu material de origem. Esse termo também já teve nova definição, para indicar concentrações ferruginosas decorrentes de acumulações absolutas de ferro. Isso exemplifica a complexidade do uso dos termos associados a estes materiais.

Francis Buchanan-Hamilton #
Possível aparência do Dr. Francis Buchanan, mais tarde Hamilton ou Hamilton-Buchanan. Cirurgião, agrimensor e botânico da Companhia das índias, publicou trabalhos sobre a geografia, a flora e a fauna da Índia, onde viveu e explorou desde o final do século 18 até 1815. Saiba mais! Foto: Reprodução Memim Encyclopedi

Resultado da ação intensa do intemperísmo!

De maneira geral Schellmann (1981) indica que estes materiais correspondem a “produtos de intensa alteração subaérea da rocha, cujo teor de ferro e/ou alumínio é maior e o de sílica é menor que a rocha parental. Estes consistem predominantemente de assembleias minerais de goethita, hematita, hidróxidos de alumínio, caulinita e quartzo”.

Estas características, apontadas por Schellmann, indicam que a ocorrência de lateritas estão associadas a climas quentes e úmidos, que ocorrem nas zonas intertropicais da Terra.

A zona de rubefação coincide com a área intertropical de formação de laterita (Tardy, 1993).

A intensidade dos processos de intemperismo químico nas zonas intertropicais é indicado por Stallard e Edmond (1983), Meybeck (1987) e Buss et al. (2017) que destacam que os trópicos recobrem cerca de 25% das terras emersas do planeta, entretanto, são responsáveis por cerca de 65% do fluxo de sílica dissolvida para os oceanos via processos de intemperismo químico.

Importantes indicadores da evolução da paisagem

Estes materiais só evoluem nestas condições, entretanto, atualmente ocorrem em diferentes regiões da Terra, como deserto do Saara ou porções da Sibéria. Desta forma, as lateritas são ótimos indicadores da deriva das placas tectônicas, pois estas lateritas se formaram em áreas tropicais e posteriormente a deriva das placas tectônicas teria posicionado estes materiais nestas regiões.

Essa possibilidade decorre do fato das lateritas serem, quando desidratadas, extremamente resistentes aos processos erosivos. Nas áreas tropicais, como no Brasil, vastas regiões possuem, nas áreas mais elevadas, espessos perfis de alteração com lateritas em seu topo.

No Brasil, diversas áreas elevadas topograficamente e com relevo plano a suave ondulado, apresentam como característica a ocorrência de lateritas nas bordas destas chapadas, que as ‘protegem’ dos processos erosivos, como no caso do Chapadão do Zagaia (MG). Foto: Acervo próprio

Apesar de serem encontradas nos topos de vertentes e escarpas, a laterita se forma nas áreas onde o lençol freático oscila durante muito tempo, ou seja, normalmente nas posições mais baixas do relevo.

As características de formação permitem utilizar as lateritas como importante indicador de condições paleotopográficas, paleoclimáticas, paleogeográficas e mais detalhadamente condições pedogenéticas.

A importância do fator tempo!

Quando as condições de formação se desenvolvem por longos períodos, em áreas tropicais úmidas, os perfis de alteração que recobrem as rochas frescas podem ser extremamente espessos, por vezes ultrapassando centenas de metros (Tricart, 1972; Scott e Pain, 2009) e são denominados de Perfis de Alteração Lateríticos ou apenas Perfis Lateríticos (BUT et al. 2009). Estes perfis de alteração normalmente estão associados a paleo-superfícies (BATTIAU- QUENEY, 1994).

Representação esquemática de um perfil laterítico coberto por um ferricrete (adaptado de Tardy, 1993)
Em cima – base do perfil laterítico afetando os depósitos da
Formação Marília; Em baixo – nível de mosqueamento posicionado acima dos sedimentos da Formação Marília. Fotos: Acervo próprio.

LATERITAS: Múltiplos usos…

As lateritas e perfis lateríticos e ferricretes foram utilizados como marcadores para correlações estratigráficas, para interpretações ambientais e paleoambientais, para análise da evolução geomorfológica, datações relativas de superfícies, indicadores de deriva continental, como marco para análises tectônicas, na produção de ouro, de ferro, de terras raras, do caulim, do níquel e como material de construção.

Pedreira de tijolos de Karaba (2009) - Autor: David Pace

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Esta é a pedreira de Karaba (Burkina Faso), onde os homens esculpem tijolos usando apenas picaretas de ferro de cabo curto. No quente sol equatorial, eles escavam o material que se tornará os blocos básicos de construção das casas e das paredes que estruturam as comunidades vizinhas.

LATERITAS: Múltiplas definições…

Diante do exposto, a laterita possui interesse para diferentes áreas de pesquisa de também econômicas, implicando que profissionais de diferentes áreas trabalharam com estes materiais. O resultado disso é que há uma grande diversidade de termos para nomear esta laterita, inclusive alguns termos possuem definições distintas em diferentes áreas do conhecimento e o mesmo termo foi alterando seu significado ao longo do tempo.

A título de exemplo há diversos trabalhos que discutem a questão relativa às diferenças terminológicas (THORP e BALDWIN, 1940; PENDLETON, 1941; PRESCOTT, 1954; SIVARAJASINGHAM et al., 1962; GERASIMOV e GLAZOVSKAYA, 1965; HAMMING, 1970; STEPHENS, 1971; PATON e WILLIAMS, 1972; HELGREN e BUTZER, 1977; SCHELLMANN, 1981, 1983; ALEVA, 1982, 1994; MILNES et al., 1985; OLLIER, 1988; TARDY E ROQUIN, 1992; TARDY, 1993; BOURMAN, 1993a, b; FIRMAN, 1994; YALLON, 1996; BOURMAN e OLLIER, 2002; AUGUSTIN, 2013; GHOSH e GUCHHAIT, 2020).

Na figura abaixo, é possível observar algumas das diferentes terminologias utilizadas. Assim a laterita de Buchanan passa a ter diferentes denominações, como ferricretes, duricrusts, couraças, cangas, entre outros. Por vezes estes termos aparecem na literatura como sinônimos, outras não, gerando grande confusão.

Comparação entre terminologias de um perfil laterítico com ferricrete Modificada de Anand & Paine (2002).

Ressalta-se que os pesquisadores que trabalham especificamente com pedologia também abordam esta temática, sendo que os solos desenvolvidos, associados aos materiais lateríticos, possuem importância agrícola, como no Brasil e, em solos quaternários, que podem também possuir um significado relevante na dinâmica geomorfológica mais recente. Em pedologia os termos plintita, petroplintita e a existência de um Horizonte F são aplicados no Sistema Brasileiro de Classificação de Solos.

Classificação dos ferricretes

No que se refere a classificação destes materiais, Bourman et al. (1987), Milnes et al. (1987) e Bourman (1993) propõem três tipos básicos de ferricrete (posteriormente o termo ferricrete foi definido com uma conotação genética, mas esta não existia para estes autores) com algumas subdivisões:

Rocha ferruginizada: rochas que apresentam impregnações ferruginosas, mas mantém suas estruturas perfeitamente identificáveis em campo. A forma mais comum é constituídas de mosqueados ferruginosos.

Sedimentos ferruginosos: ferricretes caracterizados por ampla variação de tipos de fábrica, que refletem a natureza do sedimento original. Por exemplo, no caso de sedimentos clásticos, o ferricrete apresenta abundantes grãos de areia ou clastos de quartzo e fragmentos de rocha. Quando cimentam clastos têm-se o ferricrete conglomerático. Se não existir qualquer estrutura interna será um ferricrete maciço.

Ferricretes complexos: possuem ampla diversidade de fábricas, identificando-se os seguintes tipos:


a) pisolítica: possuem grande quantidade de glébulas ferruginosas, dispersos no interior de uma matriz rica em óxidos de ferro;

b) “slaby” (laminar): formados dominantemente por placas ou lentes horizontais separadas por zonas ricas em argila;


c) vermiformes: formados por uma distribuição irregular de canais enriquecidos em ferro.


Coleção: Tipos de Ferricretes


O que influência na formação dos ferricretes?

No caso especifico dos ferricretes associados a perfis lateríticos, Thomas (1994) propõe oito fatores de formação determinantes.

1) fatores geológicos: qualquer tipo litológico pode originar os perfis lateríticos ferricretes. A composição mineralógica das rochas parentais pode influenciar fortemente na composição e nas características do perfil laterítico e ferricrete, mas os processos de intemperismo podem modificar significativamente estas características mineralógicas.

Alguns autores como Tardy et al. (1988) eTardy (1993) indicam uma influência gradativamente menor das características da rocha conforme maior o grau de evolução do perfil laterítico. Tardy et al. (1988) indicam uma tendência à homogeneização do perfil, em termos químicos e mineralógicos, independente do material de origem. A velocidade de formação dos perfis lateríticos pode variar conforme o tipo de rocha parental. Para o referido autor, as alterações sobre rochas máficas e ultramáficas podem chegar a uma velocidade três vezes maior do que sobre as de tipo félsicas.

2) fatores climáticos: fundamental para controlar a formação destes perfis. Tardy (1993) indica as seguintes características climáticas para sua formação: uma pluviosidade média anual de 1.450 mm; temperatura média anual de 28 oC; umidade relativa do ar média de 70% e uma estação seca com duração de 6 meses.

O tipo climático ideal de formação do ferricrete é aquele que corresponde às regiões de savana. Em direção à climas mais secos, ela não se forma com a disponibilidade de sílica no sistema, predominando solos com montmorillonita (LEPRUN, 1979) e também em climas muito úmidos sem estação seca, onde predominam a goethita e gibsita (BEAUVAIS e TARDY, 1993), entretanto, nestas condições ambientais mais úmidas é possível a destruição do ferricrete em certos pontos da paisagem e formação simultânea em outros.

3) Fatores bióticos: a ação da vegetação dependerá essencialmente do tipo de cobertura vegetal localizada sobre o ferricrete, através de sua ação na formação de ácidos e a ação mecânica de suas raízes. Esta ação pode definir morfologias de ferricretes. Segundo Tardy (1993), as termitas também podem possuir papel fundamental no processo de alteração do perfil laterítico e do ferricrete.

4) Fatores hidrológicos: os fatores hidrológicos são determinados pelo regime climático e pela interação com a litologia e o relevo. Esta combinação cria uma diversidade de ambientes locais com condições contrastantes para a mobilização ou precipitação do ferro e, especialmente, é fundamental a oscilação do lençol freático ao longo do ano.

5) Condições de Eh (potencial redox) e pH (potencial hidrogeniônico): o Eh torna o ferro mais móvel conforme seus valores aumentam e o pH diminui. Costa (1984) acrescenta que o pH nestes ambientes depende da atividade biológica superficial, das alterações mineralógicas desencadeadas e, como consequência, da composição química das águas percolantes.

Pequenas variações de pH e Eh na paisagem são responsáveis pela mobilidade ou precipitação do ferro, sendo essenciais para explicar, mesmo à curta distância, áreas com elevadas perdas e outras com elevadas concentrações de ferro. A figura abaixo apresenta as condições de Eh e pH para a formação das concentrações ferruginosas.

Limites dos domínios de Fe2+, Fe3+, Mn2+ e Mn4+. Fonte: Campy e Macaire (1989).

6) História geomorfológica e tectônica: a formação, evolução e destruição de ferricretes estão intimamente associadas à história da paisagem geomorfológica. As superfícies de aplainamento produziram ambientes extremamente favoráveis para seu desenvolvimento.

Deve-se destacar também que na literatura torna-se cada vez mais comum a associação da evolução de paisagens lateríticas com os processos de etchplanação (ZEESE, 1996). Também é comum indicar o ferricrete como responsável pela inversão do relevo, resultado de sua resistência aos processos intempéricos, conforme na figura ao lado.

7) fator tempo: o tempo necessário para o desenvolvimento de um espesso perfil de alteração passa, necessariamente dos 100.000 anos de duração (TARGULIAN E BRONNIKOVA, 2019). Nahon e Lappartient (1977) calcularam que um ferricrete de 0,5 a 1,0 metro de espessura requer 0,3 a 0,75 Ma. para sua individualização.

Sequência evolutiva apresentando inversão topográfica associada com a formação de duricrosta. Fonte: Summerfield (1991) e Pain et al. (2007)

Estes autores indicam que para a evolução de um perfil laterítico, sobre rochas vulcânicas, com a evolução de um manto de alteração caulinítico, individualização de um horizonte de acumulação de ferro e a evolução fisico-química da crosta ferruginosa, são necessários 6 Ma.

Na Amazônia brasileira, Oliveira e Schwab (1980) estimam um tempo mínimo de 2,8 Ma. para evolução de um perfil laterítico bem estruturado. Na literatura é possível fazer uma distinção entre os ferricretes associados a perfis lateríticos e outros que não apresentam a organização clássica nos diferentes níveis.

Figueiredo Filho et al. (2019) identificam, na região do Quadrilátero Ferrífero, espessos ferricretes associados a terraços fluviais de idade compreendida entre 140 e 83 ka. Destaca-se que nesta área há uma grande disponibilidade de ferro no sistema, por conta da presença comum de itabiritos. Desta forma, o ferricrete, per si, não é indicativo de uma evolução extremamente longa, mas ele associado a um espesso perfil laterítico sim.

8) Mudanças paleoambientais: ferricretes e perfis lateríticos ocorrem em diferentes latitudes e por conta disso podem ser utilizados como indicadores de paleolatitudes e de paleoambientes (ANNOVI et al. 1980; BARDOSSY, 1981; TARDY e ROQUIN, 1998; SCHMIDT et al., 1983; ZEESE, 1996; KUMAR, 1986; TARDY, 1993).

A literatura não apresenta uma origem única para o ferro que irá formar o ferricrete. Nitidamente, há um grupo de autores que indica um intemperismo essencialmente vertical e outro que indica a importância dos aportes laterais. Thomas (1994), após ampla revisão de literatura, identifica três possibilidades:

1) translocação vertical, através da qual o Fe2+ movimenta-se por algumas dezenas de metros, no sentido descendente, por movimento gravitacional da água subterrânea, ou ascendente por difusão iônica;

2) por transferência lateral de Fe2+ através da convergência de fluxo de água subterrânea para sítios de recepção, como vales e depressões;

3) retenção e acumulação nos horizontes superficiais (em forma de pisólitos ou nódulos) quando o perfil é rebaixado por intemperismo.

Beaudet e Coque (1994) indicam que na mesma paisagem pode-se observar diferentes gêneses de ferricrete, como a formação associada a formas residuais, também em glacis, onde há aporte lateral de ferro em solução, e eventualmente de forma mecânica na forma de clastos (figura abaixo).

É possível que um ferricrete esteja sendo alterado no topo e haja precipitação de ferro em sua base, conforme não só já observaram Tardy (1993), Moreau (1993) e Espíndola e Daniel (2008), mas também observaram os novos estudos de cronologia, que indicam a grande mobilidade de ferro no interior do ferricrete, observando-se várias gerações de solubilização e precipitação (SPIER et al., 2006).

Socle cristallin: embasamento cristalino; Altérite argileuse: alterita argilosa; Sable Limon
Argile
: Areia, silte, argila; (B): Ferricrete; (Gl): glacis de erosão com ferricrete (PI): plano silto-argiloso

Referências

David Pace Photography

Tenho fotografado no pequeno Burkina Faso, país da África Ocidental desde 2007. Nas minhas viagens anuais, moro na aldeia de Bereba, onde tenho documentado muitos aspectos da vida diária, incluindo a dança semanal (sexta à noite), o deslocamento noturno ( Sur La Route), moda local (Market Day), arquitetura tradicional (L’Ancien Village) e ocupações comuns (At Work). Outros projetos incluem a exploração da fabricação de tijolos (Karaba Brick Quarry), a mineração artesanal de ouro (Les Sites d’Or) e os quiosques de Ouagadougou, capital do Burkina Faso (Quiosques).


Sobre o autor

Francisco Sergio Bernardes Ladeira

Graduou-se bacharel em Geografia pela Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho (1989), mestre em Geografia (Geografia Física) pela Universidade de São Paulo (1995) e doutor em Geografia (Geografia Física) pela Universidade de São Paulo (2001). Atualmente é MS-3.2 da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Geociências, com ênfase em Paleopedologia, Superfícies Geomorfológicas e Relação Solo-Relevo.


Texto: Francisco S. B. Ladeira

Edição: Diego F. T. Machado


Publicações Acadêmicas do LABPED