Artigo discute ocupação humana inicial e mudanças geomorfológicas no sudeste do Brasil.

A pesquisa apresenta uma integração entre a caracterização da geologia, relevo, solos, sedimentos e de 600 artefatos de rocha lascada encontradas adjacentes a planície do rio Mogi-Guaçu, no centro do estado de São Paulo. Ocupação humana local pode ter se iniciado mais de 17 mil anos atrás. 


O artigo publicado na revista Journal of Quaternary Science [1] traz resultados parciais da pesquisa que está sendo conduzida pelo doutorando em Geografia, Pedro Michelutti Cheliz, vinculado ao LABPED | IG-UNICAMP. Nele, caracterizou-se que a ocupação humana de antigos caçadores-coletores ocorreu em encostas truncadas por movimentos laterais (~1200 m) e verticais (~5 m) do Rio Mogi-Guaçu durante o Quaternário Tardio, em uma área onde afloramentos rochosos são incomuns. Este contexto geológico favoreceu o acesso simultâneo de grupos humanos aos recursos proporcionados pela planície aluvial e pelas encostas.

Apenas artefatos de quartzo foram encontrados nos pontos mais profundos das escavações, enquanto nos segmentos intermediário e superior foram encontrados também artefatos de sílexito e arenito, sugerindo que houve mudanças nos materiais geológicos usados por estas antigas populações em paralelo as mudanças ambientais locais.

Os pesquisadores Gabriela Sartori e Pedro Michelutti nas escavações do sítio arqueológico Rincão I

No artigo se descreve como centenas de artefatos rochosos estão associados a paleossolos originários de colúvios datados por LOE* entre 20,3 e 5,5 mil anos. Essas idades são consistentes com os contextos paleopedológicos e geomorfológicos locais de mudanças paisagísticas e, em parte, controversas do ponto de vista dos modelos para a dispersão humana do sudeste do Brasil, que usualmente caracterizam idades menos antigas (entre 10 e 12 mil anos atrás) para a ocupação antrópica inicial deste setor do território nacional. 

Luminescência Opticamente Estimulada (LOE)

A datação por luminescência opticamente estimulada (LOE) é um método científico utilizado para estimar a idade de sedimentos que estiveram expostos à determinados tipos de radiação que se dispersam facilmente quando expostos a luz do sol. Desta maneira, podemos estimar o último momento em que estes materiais foram alcançados pela luz solar, e portanto estimar o tempo de deposição dos sedimentos. Esse método se baseia na medição da quantidade de radiação acumulada por grãos de quartzo, e compara-la com a taxa de emissão de radiação presente nos sedimentos. Ao comparar a quantidade de radiação acumulada nos grãos de quartzo com as taxas de emissão natural de radiação de outros minerais ali presentes, os cientistas podem determinar há quanto tempo o material foi soterrado, o que proporciona informações importantes sobre sua idade e história.
Alguns dos artefatos resgatados nas escavações, imagens dos trabalhos de campo e, ao centro, vista dos solos locais tal como observados no microscópio petrográfico

O artigo foi dedicado à memória de Manoel Martins (1959-2023), professor da rede pública de geografia e sociologia, que encantou e incentivou vocações e vidas de incontáveis estudantes na região de Araraquara, onde a pesquisa foi feita.


Artigo: Early anthropic occupation and geomorphological changes in South America: human–environment interactions and OSL data from the Rincão I site, southeastern Brazil

Leia mais aqui: [1] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/jqs.3505


Edição: Diego Fernandes Terra Machado


São Paulo antes dos Tupi: a ocupação humana e ambientes de 10mil anos atrás

por: Pedro M. Cheliz –

Com hábitos nômades e vivendo em pequenos grupos, estes antigos habitantes viveram em um tempo caracterizado por importantes mudanças ambientais.


Muitas vezes se diz que o Brasil e o Estado de São Paulo são uma terra antiga habitada por um povo jovem. Outros lembram que a gente que vive nesta terra não é tão nova, pois quando os colonizadores portugueses desembarcaram no Brasil, o território já era há muito ocupado por diversificados povos indígenas agricultores e ceramistas. Com menos frequência se lembra, porém, que antes dos indígenas Tupi e Jê, o atual território brasileiro foi ocupado por seus possíveis ancestrais, que praticavam um modo de vida distinto, num tempo tão distante do atual, que a própria Terra se apresentava de maneira diferente da de hoje, mais de 8 mil anos atrás.

As evidências da presença humana neste tempo distante no estado de São Paulo são pouco comuns, restritas a restos de pouco mais de dez antigos assentamentos, espalhados ao longo de diferentes pontos do atual território paulista. Nestes locais foram encontrados, em profundidades que por vezes excedem 3 metros, antigas ferramentas e outros vestígios de presença humana, próximos a fragmentos de carvão ou amostras de areia cujas análises em laboratórios apontam idades que chegam a ser, em alguns deles, superiores a 10 mil anos atrás.

Diversidade dos ambientes de ocupação

Tais antigos vestígios de presença humana mostram-se presentes em diferentes domínios da natureza – dos fundos de estreitos vales profundos das íngremes serras florestadas do atual litoral no extremo leste paulista, aos terrenos de declives suaves nas margens dos rios Paranapanema e Grande, no extremo oeste do estado. Apresentando-se também em meio às escarpas rochosas que marcam o centro do Estado, próximos a atuais centros urbanos do interior, como Brotas, Rio Claro, São Carlos e Araraquara. Muitos dos turistas que se dirigem a tais áreas, atraídos pelas frescas cachoeiras de seus grandes paredões rochosos, sequer desconfiam que estão se banhando próximos a alguns dos registros de ocupação mais antigos de São Paulo e do Brasil.

Algumas características dos antigos agrupamentos humanos

O estudo destes antigos vestígios da presença humana pelos arqueólogos sugere que eles são produtos de povos humanos que viviam em grupos pequenos, de algumas dezenas de pessoas, e que praticavam um modo de vida nômade ou seminômade, vivendo da caça e da coleta. Dentre tais vestígios, os mais numerosos são artefatos de pedra lascada, tais como belas pontas de projéteis criadas a partir do trabalho humano sobre rochas e quartzos translúcidos, possíveis armas ou ferramentas cerimoniais ou de caça.

Alguns dos artefatos de rocha lascada encontrados em sítios arqueológicos líticos antigos de São Paulo. Foto: acervo pessoal

Também foram identificados, em menor número, antigos sepultamentos, incluindo um esqueleto encontrado em meio a um bolsão de argila e com pontas de projéteis em suas mãos. “Luzio”, o nome pelo qual foi chamado, em referência à “Luziado povo de Lagoa Santa em Minas Gerais, foi encontrado no fundo de um vale das serras do Vale do Ribeira, e datado em cerca de 9 mil anos atrás.

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Crânios de Luzio (à esq.) e de Luzia, ambos com idades semelhantes, do Holoceno Inicial. Eduardo Cesar e laboratório de estudos evolutivos humanos / ib-usp – Reprodução – Pesquisa Fapesp

A capacidade de se adaptar frente as adversidades do meio

Estas antigas evidências da presença humana comumente encontram-se mesclado a argilas, areias, cascalhos, solos e grãos de polens que indicam que esse povoamento ancestral lidou com ambientes, climas, biomas e paisagens bastante diferentes dos atuais. Essas diferenças incluem um clima mais seco do que o dos nossos dias, uma menor presença de florestas e mais comum vegetação de campos abertos e arbustivas, com os rios e mesmo o mar estando então em posições significativamente diferentes das atuais.

Tais evidências do meio físico e biológico sugerem, ainda, que estas antigas populações viveram em um tempo caracterizado por importantes mudanças ambientais, o que possivelmente colocou à provas o modo de vida e a resistência destes antigos habitantes do estado de São Paulo. Tais grupos humanos, porém, parecem ter mostrado elevada capacidade de se adequar a tais mudanças do meio, já que alguns destes antigos assentamentos indicam a presença destes antigos caçadores e coletores ao longo de intervalos de tempo que excedem 3 mil anos (tais como nos sítios Caetetuba e Bastos).

Conhecer, compreender e valorizar!

Os conhecimentos que se tem hoje sobre este distante tempo de ocupação se devem às pesquisas efetuadas por diversas universidades estaduais e federais, e grupos de estudos independentes. Os acervos resgatados nas escavações em tais antigos sítios arqueológicos encontram-se espalhados em várias instituições e museus do estado, em geral pouco conhecidos do público. A lembrança da triste tragédia do Museu Nacional consumido pelas chamas destaca a urgência de darmos mais atenção ao tema e acompanhar a condição de preservação destes importantes acervos, para evitar que ocorram eventuais novas e irreparáveis perdas.


Saiba mais

O Homem de Capelinha – A descoberta mais antiga de um fóssil do Estado de São Paulo. – Parque Estadual do Rio Turvo

Bibliografia

Artigo científico

ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello, CORREA, Leticia Cristina. FIRST NOTICE OF A PALEOINDIAN SITE IN CENTRAL SÃO PAULO STATE, BRAZIL: BASTOS SITE, DOURADO COUNTY. Palaeoindian Archaeology. Volume 1 Número 1. 2016

CHELIZ, Pedro Michelutti; de SOUSA, João Carlos Moreno; MINGATOS, Gabriela Sartori; OKUMURA, Mercedes; ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello. A ocupação humana antiga (11-7 mil anos atrás) do Planalto Meridional Brasileiro: caracterização geomorfológica, geológica, paleoambiental e tecnológica de sítios arqueológicos relacionados a três distintas indústrias líticas. Revista Brasileira de Geografia Física v. 13 n.6. 2020

Dissertação de mestrado

SANTOS, Fabio Grossi. Sítios líticos no interior paulista: um enfoque regional. Dissertação de mestrado. USP.


Texto: Pedro Michelutti Cheliz

Edição: Diego F. T. Machado


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A ocupação humana remonta a intervalos de tempo em que a configuração do meio físico (tais como o relevo, sedimentos, rochas, rios e solos) nem sempre foi semelhante a atual. Estas diferenças se tornam tão mais intensas quanto mais antigos são tais intervalos de presença humana. Desta maneira, pesquisas que busquem estudar intervalos pretéritos da presença antropica devem levar em conta pesquisas como as desenvolvidas nas áreas de geomorfologia, pedologia, sedimentologia e estratigrafia que busquem estimar tais variações do meio físico ao longo do tempo. Visando discutir tais temas, convidamos os professores Astolfo Araujo (Museu de Arqueologia e Etnologia, USP) e Paulo Giannini (Instituto de Geociências, USP), para apresentarem um pouco dos trabalhos que vem desenvolvendo em áreas arqueológicas continentais e litorâneas do Brasil.
Kerameikos, sitio arqueológico em Atenas, Grécia

Geoarqueologia: a interpretação da história registrada nos solos

por Thaís N. Fioravanti

O esforço multidisciplinar para compreender as circunstâncias do uso e ocupação das terras pela humanidade.


Geoarqueologia é uma disciplina que utiliza os conhecimentos de geologia, e se apropria dos princípios da pedologia, sedimentologia, geomorfologia, geocronologia, geofísica e estratigrafia para compreender e identificar as circunstâncias que levaram a formação do sítio, sua preservação e consequentemente sua história.

A interação entre o meio físico e a ocupação humana antiga pode ser estudada a partir do momento em que a arqueologia busca novas ferramentas para tentar compreender essa relação do homem com o ambiente. Muitas das atividades desenvolvidas por esses grupos pré-históricos ficam registradas no solo, a partir disso, é que a pedologia entra como uma ferramenta importante de estudo.

A geoarqueologia só surgiu e se tornou uma disciplina após a publicação do livro “Geoarchaeology: Earth Science and the Past”, de Davidson e Shackley (1976), no qual Renfrew (1976) criou a expressão e a publicou em seu prefácio.

No Brasil tem destaque as Terras pretas de índio ou terras pretas arqueológicas, localizados na região norte do país e que já foram estudados por diversos pesquisadores (Woods e McCann, 1999; Lima et. al., 2002; Glaser e Birk, 2012; Macedo et al., 2017; Santos et al., 2018). Nas regiões litorâneas também podemos citar os sambaquis, solos esses que podem datar de 8.000 até 2.000 AP (Prous, 1992).

Outros casos são solos encontrados em abrigos sobre rochas e cavernas, que proporcionam um ambiente ainda mais adequado a preservação das características desenvolvidas por determinado grupo humano.

Para identificar essas características, podemos observar mudanças tanto nas características químicas, como também físicas e macromorfológicas. Determinados elementos químicos, principalmente Ca e P, se sobressaem nas análises químicas. As terras pretas arqueológicas possuem esse aspecto, além de apresentarem também coloração mais escura em relação aos outros solos da região.

Para saber mais sobre Mudanças químicas ocorridas nas terras pretas arqueológicas a partir das atividades desenvolvidas pelo homem. Acesse!

No caso dos sambaquis é possível observar restos de alimentos que eram consumidos pela população e que ainda hoje se encontram organizados em uma sucessão estratigráfica, onde encontram-se camadas de conchas intercaladas com camadas de material mais fino e de coloração escura (indicando a presença de matéria orgânica), esses sítios podem alcançar 70 metros de altura e 500 metros de comprimento (DeBlasis et. al. 2007).

Sucessão estratigráfica do sambaqui Lagoa Bonita 17, com identificação das fácies apresentadas e a descrição das arqueofácies identificadas no estudo dos perfis. Fotos: Ximena Villagran (2015), em VILLAGRAN et al. 2018

Abrigos em cavernas, principalmente cavernas de calcário são ambientes com grande habilidade de preservação (Vasconcelos et. al.), podendo encontrar ossos animais, além de pinturas nas paredes.

Dessa forma, percebe-se a importância não só da pedologia, mas de outras áreas da geociências nos estudos arqueológicos, ajudando em interpretações sobre a evolução do sítio, como era o modo de vida desses grupos pré-históricos e como se dava a sua interação com a paisagem.


Recomendação – Documentário Caverna dos Sonhos Esquecidos de Werner Herzog

Videoensaio, de Matheus Benites tendo como base o documentário Caverna dos Sonhos Esquecidos de Werner Herzog

Para saber mais

Davidson, D. A.; Shackley, M. L. 1976. Geoarchaeology: earth science and the past:(papers)/edited by DA Davidson and ML Shackley.

Nowatzki, C. H. (2005). Fundamentos de geologia arqueológica. Núcleo de Estudos e pesquisas em geologia arqueológica–NEPGEA, São Leopoldo–RS.

Renfrew, C. 1976. Archaeology and the earth sciences. Geoarchaeology: earth science and the past, p. 1-5.


REFERENCIAS

Campos, M. C. C., Dos Santos, L. A. C., Da Silva, D. M. P., Mantovanelli, B. C., & Soares, M. D. R. (2012). Caracterização física e química de terras pretas arqueológicas e de solos não antropogênicos na região de Manicoré, Amazonas. Revista agro@ mbiente on-line6(2), 102-109.

DeBlasis, P., Kneip, A., Scheel-Ybert, R., Giannini, P. C., & Gaspar, M. D. (2007). Sambaquis e paisagem: dinâmica natural e arqueologia regional no litoral do sul do Brasil. Arqueologia suramericana3(1), 29-61.

Glaser, B., & Birk, J. J. (2012). State of the scientific knowledge on properties and genesis of Anthropogenic Dark Earths in Central Amazonia (terra preta de Índio). Geochimica et Cosmochimica acta, 82, 39-51.

LIMA, H. N.; SCHAEFER, C. E. R.; MELLO, J. W. V.; GILKES, R. J, KER, J. C. Pedogenesis and pre-Columbian land use of Terra Preta Anthrosols” (“Indian black earth”) of Western Amazonia. Geoderma. 2002; 110:1-17. https://doi.org/10.1016/S0016-7061(02)00141-6.

Macedo, R. S., Teixeira, W. G., Corrêa, M. M., Martins, G. C., & Vidal-Torrado, P. (2017). Pedogenetic processes in anthrosols with pretic horizon (Amazonian Dark Earth) in Central Amazon, Brazil. PLoS One12(5), e0178038.

PROUS, A. Arqueologia brasileira. Brasília, Universidade de Brasília, 1992. 613p.

Santos, L. A. C. D., Campos, M. C. C., Aquino, R. E. D., Bergamin, A. C., Silva, D. M. P. D., Marques Junior, J., & França, A. B. C. (2013). Caracterização de terras pretas arqueológicas no sul do estado do Amazonas. Revista Brasileira de Ciência do Solo37(4), 825-836.

Santos, L. A. C. D., Araujo, J. K. S., Souza Júnior, V. S. D., Campos, M. C. C., Corrêa, M. M., & Souza, R. A. D. S. (2018). Pedogenesis in an Archaeological Dark Earth–Mulatto Earth Catena over Volcanic Rocks in Western Amazonia, Brazil. Revista Brasileira de Ciência do Solo42.

Vasconcelos, B. N. F., Ker, J. C., Schaefer, C. E. G. R., Poirier, A. P. P., & Andrade, F. V. (2013). Antropossolos em sítios arqueológicos de ambiente cárstico no norte de Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciência do Solo37(4), 986-996.

Villagran, X. S. et al. (2018). Os primeiros povoadores do litoral norte do Espírito Santo: uma nova abordagem na arqueologia de sambaquis capixabas. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 13, n. 3, p. 573-596.

Woods, W. I., & McCann, J. M. (1999). The anthropogenic origin and persistence of Amazonian dark earths. In Yearbook. Conference of latin americanist Geographers (pp. 7-14). Conference of Latin Americanist Geographers.


Texto escrito por Thaís N. Fioravanti

Edição: Diego F.T. Machado

Fotografia da Capa: Giovanni Dall’Orto – Kerameikos, sitio arqueológico em Atenas, Grécia