São Paulo antes dos Tupi: a ocupação humana e ambientes de 10mil anos atrás

por: Pedro M. Cheliz –

Com hábitos nômades e vivendo em pequenos grupos, estes antigos habitantes viveram em um tempo caracterizado por importantes mudanças ambientais.


Muitas vezes se diz que o Brasil e o Estado de São Paulo são uma terra antiga habitada por um povo jovem. Outros lembram que a gente que vive nesta terra não é tão nova, pois quando os colonizadores portugueses desembarcaram no Brasil, o território já era há muito ocupado por diversificados povos indígenas agricultores e ceramistas. Com menos frequência se lembra, porém, que antes dos indígenas Tupi e Jê, o atual território brasileiro foi ocupado por seus possíveis ancestrais, que praticavam um modo de vida distinto, num tempo tão distante do atual, que a própria Terra se apresentava de maneira diferente da de hoje, mais de 8 mil anos atrás.

As evidências da presença humana neste tempo distante no estado de São Paulo são pouco comuns, restritas a restos de pouco mais de dez antigos assentamentos, espalhados ao longo de diferentes pontos do atual território paulista. Nestes locais foram encontrados, em profundidades que por vezes excedem 3 metros, antigas ferramentas e outros vestígios de presença humana, próximos a fragmentos de carvão ou amostras de areia cujas análises em laboratórios apontam idades que chegam a ser, em alguns deles, superiores a 10 mil anos atrás.

Diversidade dos ambientes de ocupação

Tais antigos vestígios de presença humana mostram-se presentes em diferentes domínios da natureza – dos fundos de estreitos vales profundos das íngremes serras florestadas do atual litoral no extremo leste paulista, aos terrenos de declives suaves nas margens dos rios Paranapanema e Grande, no extremo oeste do estado. Apresentando-se também em meio às escarpas rochosas que marcam o centro do Estado, próximos a atuais centros urbanos do interior, como Brotas, Rio Claro, São Carlos e Araraquara. Muitos dos turistas que se dirigem a tais áreas, atraídos pelas frescas cachoeiras de seus grandes paredões rochosos, sequer desconfiam que estão se banhando próximos a alguns dos registros de ocupação mais antigos de São Paulo e do Brasil.

Algumas características dos antigos agrupamentos humanos

O estudo destes antigos vestígios da presença humana pelos arqueólogos sugere que eles são produtos de povos humanos que viviam em grupos pequenos, de algumas dezenas de pessoas, e que praticavam um modo de vida nômade ou seminômade, vivendo da caça e da coleta. Dentre tais vestígios, os mais numerosos são artefatos de pedra lascada, tais como belas pontas de projéteis criadas a partir do trabalho humano sobre rochas e quartzos translúcidos, possíveis armas ou ferramentas cerimoniais ou de caça.

Alguns dos artefatos de rocha lascada encontrados em sítios arqueológicos líticos antigos de São Paulo. Foto: acervo pessoal

Também foram identificados, em menor número, antigos sepultamentos, incluindo um esqueleto encontrado em meio a um bolsão de argila e com pontas de projéteis em suas mãos. “Luzio”, o nome pelo qual foi chamado, em referência à “Luziado povo de Lagoa Santa em Minas Gerais, foi encontrado no fundo de um vale das serras do Vale do Ribeira, e datado em cerca de 9 mil anos atrás.

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Crânios de Luzio (à esq.) e de Luzia, ambos com idades semelhantes, do Holoceno Inicial. Eduardo Cesar e laboratório de estudos evolutivos humanos / ib-usp – Reprodução – Pesquisa Fapesp

A capacidade de se adaptar frente as adversidades do meio

Estas antigas evidências da presença humana comumente encontram-se mesclado a argilas, areias, cascalhos, solos e grãos de polens que indicam que esse povoamento ancestral lidou com ambientes, climas, biomas e paisagens bastante diferentes dos atuais. Essas diferenças incluem um clima mais seco do que o dos nossos dias, uma menor presença de florestas e mais comum vegetação de campos abertos e arbustivas, com os rios e mesmo o mar estando então em posições significativamente diferentes das atuais.

Tais evidências do meio físico e biológico sugerem, ainda, que estas antigas populações viveram em um tempo caracterizado por importantes mudanças ambientais, o que possivelmente colocou à provas o modo de vida e a resistência destes antigos habitantes do estado de São Paulo. Tais grupos humanos, porém, parecem ter mostrado elevada capacidade de se adequar a tais mudanças do meio, já que alguns destes antigos assentamentos indicam a presença destes antigos caçadores e coletores ao longo de intervalos de tempo que excedem 3 mil anos (tais como nos sítios Caetetuba e Bastos).

Conhecer, compreender e valorizar!

Os conhecimentos que se tem hoje sobre este distante tempo de ocupação se devem às pesquisas efetuadas por diversas universidades estaduais e federais, e grupos de estudos independentes. Os acervos resgatados nas escavações em tais antigos sítios arqueológicos encontram-se espalhados em várias instituições e museus do estado, em geral pouco conhecidos do público. A lembrança da triste tragédia do Museu Nacional consumido pelas chamas destaca a urgência de darmos mais atenção ao tema e acompanhar a condição de preservação destes importantes acervos, para evitar que ocorram eventuais novas e irreparáveis perdas.


Saiba mais

O Homem de Capelinha – A descoberta mais antiga de um fóssil do Estado de São Paulo. – Parque Estadual do Rio Turvo

Bibliografia

Artigo científico

ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello, CORREA, Leticia Cristina. FIRST NOTICE OF A PALEOINDIAN SITE IN CENTRAL SÃO PAULO STATE, BRAZIL: BASTOS SITE, DOURADO COUNTY. Palaeoindian Archaeology. Volume 1 Número 1. 2016

CHELIZ, Pedro Michelutti; de SOUSA, João Carlos Moreno; MINGATOS, Gabriela Sartori; OKUMURA, Mercedes; ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello. A ocupação humana antiga (11-7 mil anos atrás) do Planalto Meridional Brasileiro: caracterização geomorfológica, geológica, paleoambiental e tecnológica de sítios arqueológicos relacionados a três distintas indústrias líticas. Revista Brasileira de Geografia Física v. 13 n.6. 2020

Dissertação de mestrado

SANTOS, Fabio Grossi. Sítios líticos no interior paulista: um enfoque regional. Dissertação de mestrado. USP.


Texto: Pedro Michelutti Cheliz

Edição: Diego F. T. Machado


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A ocupação humana remonta a intervalos de tempo em que a configuração do meio físico (tais como o relevo, sedimentos, rochas, rios e solos) nem sempre foi semelhante a atual. Estas diferenças se tornam tão mais intensas quanto mais antigos são tais intervalos de presença humana. Desta maneira, pesquisas que busquem estudar intervalos pretéritos da presença antropica devem levar em conta pesquisas como as desenvolvidas nas áreas de geomorfologia, pedologia, sedimentologia e estratigrafia que busquem estimar tais variações do meio físico ao longo do tempo. Visando discutir tais temas, convidamos os professores Astolfo Araujo (Museu de Arqueologia e Etnologia, USP) e Paulo Giannini (Instituto de Geociências, USP), para apresentarem um pouco dos trabalhos que vem desenvolvendo em áreas arqueológicas continentais e litorâneas do Brasil.
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