Antropoceno: Época do Quaternário?

por: Érika C.N. Silva e Caio A.M. dos Santos –

O debate acalorado que traz para o centro do palco a extensão das ações humanas no espaço e no tempo.


Os avanços e descobertas científicas ocorrem a partir de uma gama de fatores que não são, de forma alguma, descontextualizados de seus recortes espaço-temporais. A velocidade, por exemplo, com a qual uma ideia pode ser amplamente difundida, debatida, aceita ou criticada pode ser uma das principais marcas dos tempos atuais. O que há décadas requeria muito mais tempo para ser traduzido e incluído em variados espaços de debate, hoje a distância espaço-temporal muitas vezes se restringe a um clique. E não é à toa, portanto, que uma ideia/conceito como o Antropoceno possui tantos matizes capazes de fazer cientistas do mundo inteiro e de diferentes áreas do conhecimento debaterem e produzirem conhecimento. E consenso para esse tema está longe de ser alcançado e mesmo desejado, visto que é na complexidade do debate que se está pensando, analisando, reinterpretando e abrindo múltiplas possibilidades de compreensão da relação sociedade-natureza, que está no cerne da discussão do Antropoceno.

O que está em pauta?

Afinal, como falar de uma nova época geológica relativa à agência humana sem colocar em debate questões como por exemplo:

1) As modificações causadas pelo ser humano na Terra são capazes de justificar a definição de uma nova época geológica?

2) Se sim, qual seria o marco espaço-temporal desse novo “recorte” no tempo geológico?

3) Ao falar de “ser humano” não há a necessidade de especificar quem é esse humano (de qual classe social, de onde, com qual real capacidade de interferência nos processos naturais, com qual real intensão, etc.)?

4) O reconhecimento de uma nova época geológica é capaz de suscitar debate sobre a nossa própria sociabilidade e os possíveis rumos que a humanidade deverá trilhar?

5) Se sim, não é desejável discutir, também, as reais causas das alterações, digamos, negativas (porque negativas para alguém, talvez não para todos)? Essas são poucas das muitas questões postas.

Representação artística de edifícios modernos compondo uma coluna estratigráfica – A estratigrafia é o ramo da geologia que estuda os estratos ou camadas de rochas, com o objetivo de compreender sua formação. Uma coluna estratigráfica explicita a relação cronológica das rochas de uma região, evidênciando o empilhamento das diferentes unidades litológicas. Imagem: Diego F.T. Machado, com uso da ferramenta DALL-E2

O Antropoceno em foco

Em termos de uma nova época geológica, o trabalho do Anthropocene Working Group está, como se diz, a todo vapor. Veículos importantes de divulgação da ciência mundial, como a Science e a Nature têm possibilitado a divulgação dos trabalhos, e mesmo contrapontos a eles. Aqui apresentaremos algumas das principais linhas do debate posto em termos do Antropoceno pelo viés geológico.

Em publicação recente na Nature, McKenzie Prillaman (2022) [1] aborda o tema a partir de um texto de Waters e Turner (2022) [2] publicado na Science, além de apresentar, em contrapartida, a opinião de outros cientistas e pesquisadores que não acreditam na viabilidade da definição do Antropoceno como época geológica. Engloba, assim, vários dos principais argumentos utilizados pelo AWG (Anthropocene Working Group), do qual Colin Waters e Simon Turner são, respectivamente, presidente e secretário atuais, para ratificar o Antropoceno como nova época geológica, bem como alguns contrapontos. Esse debate está ocorrendo de forma intensa, visto que a intenção é a apresentação, em breve, de uma proposta formal, por parte do AWG, sobre o início do Antropoceno como época geológica e seu possível GSSPGlobal Boundary Stratotype Sections and Points (Seção e ponto de estratotipo de limite global).

Mas o que seria o GSSP?

Conforme o site da Comissão Internacional de Estratigrafia [3], os GSSPs, são pontos de referência em seções estratigráficas de rocha que definem os limites inferiores dos estágios da Tabela Cronoestratigráfica Internacional, e desde 1977 essa comissão mantém o registro internacional deles. Apenas por curiosidade, destaca-se que entre as regras estão a obrigação do limite ser definido por uma mudança observável e inequívoca nas propriedades físicas ou no conteúdo fóssil dos estratos, bem como deve apresentar outras manifestações físicas (marcadores secundários) que podem ser usadas para localizar o limite, como outros fósseis, mudanças químicas e reversão magnética. Além desses, outro fator importante é que os marcadores primários ou secundários devem apresentar manifestações regionais e globais, permitindo a correlação em afloramentos da mesma idade, além de apresentar camadas com minerais possíveis de serem datados radiometricamente.

A Escala de Tempo Geológico retrata a sequência temporal desde a formação da Terra até o presente. Essas divisões são baseadas nos principais eventos geológicos que ocorreram ao longo da história geológica do nosso planeta. As unidades cronoestratigráficas correspondem a conjuntos de rochas que se formaram durante um intervalo específico de tempo. Para padronizar essas unidades em nível internacional, temos a Tabela Cronoestratigráfica Internacional [4], um documento que estabelece os limites e as unidades de tempo geológico atualmente adotadas em todo o mundo.

Essas e outras regras devem, portanto, ser seguidas na proposição do Antropoceno para a finalidade de inclusão na Tabela Cronoestratigráfica Internacional. No entanto, o caminho até lá não é simples, e mesmo após a definição de um GSSP pelo AWG, ainda precisa passar por outras aprovações: da Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário e Comissão Internacional de Estratigrafia, além da ratificação pelo Comitê Executivo da União Internacional de Ciências Geológicas. Em caso de aprovação, a alteração na Tabela Cronoestratigráfica Internacional mostrará, definitivamente, que saímos da época do Holoceno e entramos no Antropoceno.

Os locais em Estudo para os GSSPs do Antropoceno

Até o momento, 12 locais têm sido estudados como possibilidades para abrigar o GSSP do Antropoceno (Figura 1). Como é possível observar, há uma variedade de ambientes que são cogitados para abarcar o GSSP, e não são, necessariamente, em rochas, abarcando deposição antropogênica, corais, espeleotema, deposições em lagos e estuários, mantos de gelo, entre outros. Isto não é necessariamente novo, visto que para as idades do holoceno foram escolhidos testemunhos de gelo e espeleotemas (Greenlandiano no núcleo de gelo NGRIP2 da Groenlândia; Northgrippiano no núcleo de gelo NGRIP1 da Groenlândia; Megalayano em um espeleotema da Caverna Mawmluh, Meghalaya, nordeste da Índia) [5]. Esses locais estão sendo avaliados considerando suas evidências quanto à ação humana transformadora das características das paisagens.

Figura 1. Localização dos 12 candidatos e demais localidades de referência indicando o ambiente deposicional. Imagem de satélite: Terra visível da NASA. Fonte: Waters et al. (2023). Reproduzido com modificações de Head et al. (2022).

De acordo com o texto publicado na Science (WATERS; TURNER, 2022),

A definição precisará identificar propriedades físicas específicas em camadas de sedimentos, ou estratos, que capturem os efeitos de aumentos recentes na população humana; industrialização e globalização sem precedentes; e mudanças impostas na paisagem, clima e biosfera” (p. 706, tradução nossa).

Podemos levantar alguns questionamentos sobre esta afirmação, especialmente com relação ao aumento na população humana e os efeitos disso nos diferentes ambientes, ampliando o debate para questões como a desigualdade de acesso aos diferentes bens, exclusão social e capitalismo, diferentes tipos de impactos causados por determinados grupos sociais, classes sociais, etc. Ou seja, as mudanças nos diferentes ambientes e paisagens não são necessariamente relacionadas ao número de pessoas, mas sim a fatores muito mais complexos e que precisam ser estudados, visto que não são todos os seres humanos que causam efeitos no ambiente na mesma dimensão. No entanto, Waters e Truner (2022) assumem que encontrar um único GSSP, que represente uma referência global para o Antropoceno, é desafiador ao se ter em mente a diversidade de modificação geológica que tem ocorrido em diferentes ambientes.

Microplástico, alterações geoquímicas e partículas carbonosas – os marcadores do Antropoceno

Em termos de definição de uma época geológica relativa à humanidade, vários marcadores são mencionados nos trabalhos do AWG como amplamente difundidos em diferentes ambientes deposicionais. Dentre os quais os microplásticos, que se encontram bastante difundidos em diferentes ambientes da Terra, até mesmo dentro do próprio corpo humano [6] [7], e tem relação, entre muitos outros fatores, com processos industriais e globalização.

Contudo, grande atenção tem sido dada a outros marcadores como importantes na definição do GSSP. Estes incluem os relacionados às alterações geoquímicas (isótopos de Plutônio relativos aos testes com bombas nucleares, análise de isótopos de Carbono e Nitrogênio), aparecimento de partículas esferoidais carbonosas (Figura 2), resultantes da queima de combustíveis fósseis, e são considerados como marcadores estratigráficos importantes a nível mundial, apesar da consideração da importância, também, da presença de microplásticos, metais pesados e das modificações bióticas, como na introdução de espécies em um novo local (WATERS; TURNER, 2022).

Ao considerar esses marcadores, a década de 1950 tem sido apontada como possível data para o início do Antropoceno, visto que os trabalhos indicam o surgimento, ou mesmo intensificação, da presença deles em variados ambientes estudados. Idealmente, Waters e Turner (2002) comentam, também, que o local do GSSP deve possuir estratos datáveis com precisão, permitindo a fixação do Antropoceno em um ano específico, bem como apresentar um registro completo, sem lacunas ou distúrbios no intervalo de fronteira entre o Holoceno e o Antropoceno.

Uma imagem de microscopia eletrônica de varredura mostrando uma partícula esferoidal carbonosa (SCP) de aproximadamente 40 μm de diâmetro de Crawford Lake, Canadá. Fonte: Waters e Turner (2022).

Um debate persistente

Não há um único posicionamento na ciência a respeito do Antropoceno, como bem mostra Prillaman (2022). Uma das discussões é sobre a própria pesquisa e ciência Geológica conforme comenta Stanley Finney, presente na publicação de Prillaman (2022), ao afirmar que normalmente os geólogos encontram o estrato que deve entrar na escala do tempo geológico e, apenas depois, consideram a proposição do Golden Spike (Figura 3), rumo diferente do que a pesquisa do Antropoceno tem tomado.

Golden Spike é uma marcação física incluída no local escolhido para representar o limite entre um estágio e outro do tempo geológico

Este Golden Spike nas Cordilheiras Flinders da Austrália Meridional foi aprovado por geólogos em 2004, para marcar estratos que exemplificam o período Ediacarano. Crédito: James St. John (CC BY 2.0). Fonte: PRILLAMAN (2022).

Aqui no Brasil, o pesquisador Alex Peloggia [8] (2015) já havia realizado raciocínio semelhante, ao comentar que o conceito do Antropoceno surgiu a partir do reconhecimento de mudanças ambientais em nível planetário, e não no registro estratigráfico geológico, como de costume na Geologia, o que teria gerado problemas iniciais quanto à sustentação da ideia do Antropoceno a nível estratigráfico.

Já Lucy Edwards, como apresentado na publicação de Prillaman (2022), acredita que o estrato que pode definir o Antropoceno ainda não existe, devido a proposta época ser muito jovem. Em conjunto com outros pesquisadores, Edwards e Finney defendem a ideia do Antropoceno como “evento”, sendo este um termo mais flexível e que pode indicar extensão no tempo, a depender do impacto humano (PRILLAMAN, 2022). Cabe destacar que em 2014, Oliveira e Peloggia [9], no Brasil, haviam proposto uma definição de evento que dizia respeito ao caráter diacrônico das alterações causadas pelos seres humanos no planeta, o Evento Tecnogênico.

O debate parece estar longe de terminar, o que, por incrível que pareça, é positivo para a ciência!

Mesmo que o Antropoceno entre de vez na Tabela Cronoestratigráfica Internacional, ainda haverá muito a se discutir, como: 1) qual é o real impacto, em diferentes ciências, em se considerar o Antropoceno apenas pós 1950 e como se designar a todo o recorte temporal anterior, no qual as diferentes sociedades humanas também deixaram suas marcas nas paisagens? 2) O que esses marcadores considerados na definição do Antropoceno realmente nos dizem sobre a nossa sociabilidade? 3) O que se é definido, em grande parte, como alterações nas paisagens, e consequentes marcas nos estratos estratigráficos no Norte global pode ser correlacionado ao que se observa no Sul global? 4) Se as modificações nas paisagens e ambientes, em parte, são consideradas como “impactos”, quem são os atores sociais realmente responsáveis por eles? Como vemos, a questão do Antropoceno é muito mais ampla do que a sua definição em termos geológicos.


Para saber mais!

A ÉPOCA DO ANTROPOCENO: A EXPRESSÃO DO IMPACTO HUMANO AVASSALADOR NO PLANETA TERRA

Agradecimento ao apoio financeiro: Processo nº 2019/21885-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
“As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.


Referências:

HEAD, M. J. et al. The Great Acceleration is real and provides a quantitative basis for the proposed Anthropocene Series/Epoch. Episodes Journal of International Geoscience, v. 45, n. 4, p. 359-376, 2022.

PELOGGIA, A. U. G. Os registros geológicos da ação humana e o Antropoceno-Tecnógeno: a estratigrafia da Arqueosfera. In: Congresso da Associação Brasileira de Estudos do Quaternário. 2015. p. 12-13.

OLIVEIRA, A. M. S.; PELOGGIA, A. U. G. The Anthropocene and the Technogene: stratigraphic temporal implications of the geological action of humankind. Quaternary and Environmental Geosciences, v. 5, n. 2, 2014.

PRILLAMAN, M. Are we in the Anthropocene? Geologists could define new epoch for Earth. Nature, 2022.Waters e Turner.

WATERS, C. N. et al. Candidate sites and other reference sections for the Global boundary Stratotype Section and Point of the Anthropocene series. The Anthropocene Review, p. 1-22, 2023.

WATERS, C. N.; TURNER, S. D. Defining the onset of the Anthropocene. Science, v. 378, n. 6621, p. 706-708, 2022.


[1] https://www.nature.com/articles/d41586-022-04428-3

[2] https://www.science.org/doi/abs/10.1126/science.ade2310

[3] https://stratigraphy.org/gssps/

[4] https://stratigraphy.org/chart

[5] https://www.episodes.org/journal/view.html?doi=10.18814/epiiugs/2018/018016

[6] https://revistapesquisa.fapesp.br/a-ameaca-dos-microplasticos/

[7] https://revistapesquisa.fapesp.br/respirando-microplasticos/

[8] https://www.abequa.org.br/trabalhos/Anais_XV_ABEQUA.pdf

[9] https://revistas.ufpr.br/abequa/article/view/34828


Texto: Érika Cristina Nesta Silva e Caio Augusto Marques dos Santos

Edição: Diego Fernandes Terra Machado

Arte da Capa: Diego Fernandes Terra Machado


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